“A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido”, escreve H.P. Lovecraft em O Horror Sobrenatural na Literatura (1926), para argumentar em defesa dessas narrativas na literatura. Embora quase cem anos tenham se passado desde sua obra, esse estilo, mesmo contando com uma legião de fãs mundo afora, ainda sofre com o descaso da academia e da crítica enquanto gênero literário. A coletânea As Melhores Histórias Brasileiras de Horror, organizada por Marcello Simão Branco e César Silva para a editora Devir, tenta mudar esse panorama por aqui ao retratar a história do horror nacional.

Reunindo contos de autores clássicos como Machado de Assis, João do Rio e Afonso Arinos, além de nomes contemporâneos, como Roberto de Sousa Causo, Carlos Orsi e Márcia Kupstas, a antologia vem na esteira de um bom momento para o gênero no País. No cinema, As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, O Juízo, de Andrucha Waddington, Morto Não Fala, de Dennison Ramalho, e O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida, são apenas alguns exemplos de filmes nacionais que dialogaram com o horror e obtiveram certo sucesso – se não nas bilheterias, pelo menos com a crítica.

Na literatura, ao menos três obras recentes reuniram narrativas de horror escritas por grandes autores: Contos de Assombro (Carambaia) traz penas de peso pouco associadas ao gênero, como Virginia Woolf, Émile Zola, Luigi Pirandello e Ivan Turguêniev; Contos Macabros (Escrita Fina) prioriza os nomes já estabelecidos do panteão nacional, como Aluísio Azevedo, Lima Barreto e Humberto de Campos; e Contos Clássicos de Terror (Companhia das Letras) mescla brasileiros como Lygia Fagundes Telles a estrangeiros como Shirley Jackson.

Nesse cenário, o mérito do livro organizado por Marcello e César é mapear o horror nacional com uma seleção cronológica, perpassando várias décadas desde seus primórdios – o primeiro conto, A Vida Eterna, de Machado de Assis, data de 1870 – até hoje, sendo o mais recente, Bradador, de Braulio Tavares, publicado em 2014.

“O recorte cronológico salienta o desenvolvimento dos temas, como foram mudando ao longo do tempo os interesses dos autores e a forma de retratar o horror”, afirma Marcello ao Estado. Ele pontua uma interessante peculiaridade do horror brasileiro: as histórias mais antigas bebiam das superstições do ambiente rural e, mais recentemente, começaram a refletir os temores da vida urbana. César detalha os principais assuntos abordados em ambos os casos: “Na zona rural, monstros mitológicos que fazem parte do imaginário do homem do campo e seres importados das religiões de matriz africana ou mesmo das tradições indígenas. Já no espaço urbano, surge a questão da violência, principalmente de cunho sexual, mas também a violência cotidiana, a polícia, traços de psicopatia, brigas entre vizinhos, o trânsito. Autores ainda mais recentes começaram a trabalhar com as lendas urbanas também”, explica o organizador.

O caldo cultural brasileiro é rico, entre outros aspectos, por sua diversidade religiosa, o que se reflete na produção nacional de horror. “À medida que se invade o espaço do sobrenatural, lidando com fantasmas, espíritos, monstros, você está naturalmente mexendo no mesmo substrato religioso, então os conceitos surgem naturalmente”, explica César.

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Para Marcello, o horror se estabeleceu mais firmemente no País como um gênero juntamente com a fantasia e a ficção científica – vários dos autores presentes na antologia transitaram por esses universos, aliás -, principalmente nos anos 1950, “quando uma série de antologias foram lançadas”. No entanto, os escritores só tomaram consciência do estilo em que se inseriam bem mais tarde, “talvez até com uma militância, a partir dos anos 1980, quando desenvolveram uma espécie de comunidade informalmente”. Marcello relata ainda que esse despertar demorou a ocorrer em função de circunstâncias alheias à literatura. “Quando o Brasil finalmente deixou as trevas do regime autoritário, a própria informação mais livre, o surgimento de jovens mais antenados em relação ao que se fazia no exterior, tudo isso oxigenou um pouco a produção não só literária, mas no cinema, nos quadrinhos, nos videogames.”

Apesar do bom momento que vive no País, o gênero ainda tem muitos obstáculos pela frente, de acordo com Marcello, como a distribuição dos livros, ainda não tão ramificada pelo Brasil, e o pouco reconhecimento dos estudiosos. “Alguns trabalhos acadêmicos vêm surgindo, principalmente de jovens pesquisadores, mas tudo ainda é muito marginal. Boa parte dos trabalhos acabam se remetendo a autores mortos. Teses sobre correntes literárias mais recentes ainda são uma ousadia dentro da academia”, diagnostica ele.

“O autor brasileiro de horror já começa deficitário, porque tem que enfrentar um mercado que não quer lê-lo, que opta por uma ficção traduzida”, lamenta César. Embora ele cite editoras como a Draco, Avec, e Não Editora (responsável pela antologia Ficção de Polpa), além da própria Devir, como pontos positivos no cenário nacional, César acredita que ainda faltam publicações especializadas impressas e também critica o pouco interesse dos leitores e mesmo dos autores brasileiros pelos títulos daqui: “Não se pode viver só de Stephen King, Clive Barker e Lovecraft. É preciso ler os clássicos brasileiros.”

É justamente essa lacuna que vem preencher a antologia As Melhores Histórias Brasileiras de Horror, que mostra o quanto de sobrenatural já existe na literatura nacional. Afinal, não é todo dia que se lê Machado de Assis escrevendo sobre rituais sobrenaturais que envolvem canibalismo para obter a imortalidade: “As mulheres aproximaram-se de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais; todos concordaram em que eu estava gordo e havia de ser excelente prato”.

CONTOS DA ANTOLOGIA

A Vida Eterna (1870)

Machado de Assis

Acauã (1893)

Inglês de Sousa

Demônios (1893)

Aluísio Azevedo


Assombramento (História do Sertão) (1898)

Afonso Arinos

O Defunto (1907)

Thomaz Lopes

A Peste (1910)

João do Rio

Rag (1922)

M. Deabreu

O Espelho (1938)

Gastão Cruls

Tuj (1965)

Walter Martins


Geppeto (1987)

Márcia Kupstas

Bença, Mãe (1992)

Júlio Emílio Braz

Solo Sagrado (1995)

Carlos Orsi

Trem de Consequências (1995)

Roberto de Sousa Causo

O Fascínio (1997)

Tabajara Ruas

Os Internos (2007)

Gustavo Faraon

Bradador (2014)

Braulio Tavares

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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