Mehmet Daimagüler é o primeiro encarregado do combate à discriminação das etnias nômades na Alemanha. Ele critica falta de reflexão sobre passado e papel da mídia em perpetuar preconceitos como “criminalidade de clã”.Que condutas racistas e discriminatórias têm tradição histórica? Como elas influenciam as instituições estatais até hoje? Essas são as questões que mais motivam o deputado federal alemão de origens turcas Mehmet Daimagüler.

Já há décadas ele se ocupa de racismo, o qual conhece por experiência própria, também como advogado das vítimas no processo da Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU), célula neonazista que entre os anos 2000 e 2007 matou nove estrangeiros e uma policial na Alemanha.

Desde o começo de maio de 2022, Daimagüler atua como encarregado federal contra o anticiganismo e pela vida das etnias nômades sinti e rom (ciganos). Segundo ele, muitos dos desafios que enfrenta resultam da falta de análise e processamento da história.

“Foi recalcado o fato de que esses criminosos não eram só nazistas, mas também alemães. Nossos avós mandaram assassinar ou assassinaram os avós [dos ciganos]. Assim, também depois de 1945, se fez de tudo para que os criminosos de então permanecessem livres de culpa. Para tal, os mortos foram criminalizados. Essa narrativa da criminalidade dos sinti e roma é, justamente, um eco daqueles tempos.”

“Policiais precisam treinamento de direitos humanos”

Esse eco se manifesta, ainda hoje, no trabalho da Polícia e da Justiça. Por isso é preciso agir também sobre as gerações mais jovens, na política de contratação e no material didáticos para formação profissional e carreira dos funcionários, frisa o deputado.

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“Assim como os policiais têm que fazer treinamento de tiro regularmente, também deveriam ter que cumprir regularmente treinamento de direitos humanos, com a participação de integrantes da comunidade [sinti e rom], como recurso importante e como parceiros em pé de igualdade.”

Devido às experiências negativas da comunidade na interação com Polícia e Justiça, a maioria dos delitos cometidos contra seus integrantes nunca são registrados, permanecendo, assim, invisíveis. “Os atingidos são abandonados. Muitos, justificadamente, depositam pouca confiança na Polícia e no Ministério Público. A política deve cuidar mais, justamente, desses casos desconhecidos.”

A nova Central de Denúncias de Anticiganismo (Meldestelle Antiziganismus, MIA) deverá dar uma contribuição vital nesse aspecto: no futuro, os afetados poderão registrar sua queixa sem passar por uma delegacia. “A MIA deverá se tornar um instrumento importante para que ao menos se calcule o número real dos casos. E aqui não se trata apenas de casos de relevância penal, mas também de agressões que vão além disso.”

Imagem de nômades na mídia: “sensacionalismo irresponsável”

A narrativa racista da “criminalidade de clã” também domina a representação dos sinti e roma na mídia, prossegue Daimagüler. Vez por outra ele esbarra em assim chamadas “reportagens investigativas” que visam ampliar suas tiragens e alcance instigando medos.

“Aqui, através de exemplos assustadores isolados de criminalidade, se tira conclusões sobre o comportamento de toda a comunidade. Gosta-se de afirmar que a cultura e a suposta incapacidade de aceitar regras seriam as causas de um comportamento criminoso.”

Para o jurista, tais matérias atestam “falta de respeito fundamental pelo ofício jornalístico” e “sensacionalismo irresponsável em nome das quotas de audiência”. Os membros das etnias nômades chegados à Alemanha como refugiados são ainda mais visados pela tradicional desconfiança generalizada.

“Os roma em geral, em especial os dos Bálcãs – parte dos quais vive há décadas aqui com um status de permanência incerto – devem ser classificados como especialmente necessitados de proteção. Para eles, aquela região não é segura: é imoral e indecente enviar esses indivíduos de volta ao perigo que os espreita lá. Atualmente, os roma que fugiram da Ucrânia são submetidos a triagens – e utilizo essa palavra muito intencionalmente – nas estações ferroviárias, e tratados pior do que os outros.”

“Anticiganismo é traição dos valores da nossa sociedade”

Uma das bases importantes para o programa de trabalho do deputado turco-alemão é o relatório da Comissão Independente Anticiganismo (UKA, na sigla alemã), que documenta as injustiças continuadas contra sinti e roma. Assim, mesmo depois da época nazista, a minoria foi excluída do sistema educacional e de diversas profissões. E mais da metade dos processos por discriminação se refere à interação com autoridades e instituições públicas.

Por esses motivos, o diálogo, feedback e crítica partindo das etnias nômades é um pilar importante para a atuação de Daimagüler, em cuja opinião no futuro deveria ser a própria comunidade a orientar os processos transformadores importantes.


Mehmet Daimagüler reflete criticamente sobre o fato de não possuir raízes nômades: está claro que ele não pode sentir a dor e sofrimento da mesma forma que seus membros. No entanto, sua função não é representar os sinti e roma, mas sim consolidar estruturalmente a participação dos sinti e roma nos processos decisórios da política, ressalva, já que só assim a voz deles ganhará peso duradouro.

“Sei que preciso trabalhar para conquistar a confiança da comunidade. A integração estrutural dos sinti e roma nos grêmios consultores, assim como o intercâmbio de conteúdos com organizações e representantes, é enormemente importante para mim e para a qualidade do nosso trabalho.”

No fim das contas, trata-se de o Estado e a sociedade majoritária assumirem a responsabilidade pelo fim da exclusão das etnias nômades e para que essa comunidade não seja deixada só com o racismo e a discriminação, pois “anticiganismo é um problema para os afetados, mas, acima de tudo, um problema para a sociedade majoritária, pois representa uma traição dos nossos valores”.


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