Os gritos de Mineirinho se tornavam mais intensos mesmo que abafados pelo crepitar das chamas: “Assoprador! Assoprador!, gritava. Meus olhos ardiam com a fumaça. A sensação térmica era de 50 graus e a noite escura estava pintada de laranja pela luz das labaredas. De repente meu maior pesadelo se tornou realidade. Olhando à minha volta percebi que estava cercado pelo fogo que fustigava o Pantanal. Se fosse um filme de Hollywood esse era o momento da aparição milagrosa e improvável dos heróis, ou o momento do flashback, que explica como o protagonista foi parar no meio do caos, antecipando o desfecho da situação. Acreditem se quiser, apesar de não ser um filme, os heróis apareceram. E estavam dispostos a tudo para vencer o fogo e salvar a fauna e flora da região.

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Embarquei para o Pantanal junto com o biólogo Hugo Fernandes para documentar a situação do incêndio, os esforços para apagá-lo e o cotidiano dos brigadistas, veterinários e voluntários. Percorremos, ao todo, mais de 2.000 km por terra, água e ar. A viagem começou pelo Refúgio Ecológico Caiman e, a partir dali, começamos uma jornada ao inferno. Cruzamos a BR-262 até Corumbá e na manhã seguinte pegamos carona até a fazenda Acurizal na Serra do Amolar, num pequeno avião que estava levando suprimentos a bombeiros e brigadistas. Do ar, a fumaça me impressionou. O piloto Francisco Boabaid, de tradicional família pantaneira, disse que em 46 anos de vôo nunca viu incêndios como esse.

DEVASTAÇÃO Fogo no Pantanal destruiu área equivalente à de Alagoas: fauna em risco (Crédito:Lawrence Wahba/Divulgação)

Mal aterrissamos e um piloteiro nos esperava para nos levar ao Parque Nacional do Pantanal. A medida que o barco de metal serpenteava as curvas do rio Paraguai, o horizonte ficava mais esfumaçado. Assim que entramos no rio São Lourenço um bafo quente anunciou que onde tinha fumaça, agora havia algumas pequenas chamas isoladas. Chegando ao parque encontramos um destacamento de brigadistas do ICMBio reforçado por uma unidade do corpo de bombeiros de Maringá (PR), sob o comando da tenente Luisiana Cavalcante, de 36 anos. Luisiana sempre quis ser bombeira, mas estava ali por acaso. Num primeiro momento seu marido, também bombeiro, é quem iria ao Pantanal, mas de última hora ela que foi convocada. O marido se prontificou a ficar com os filhos pequenos Apesar do rosto coberto por uma máscara, Luisiana sorria com os olhos à medida que falava sobre uma missão de salvamento

Ao seu lado, o tenente Pedro Rocha de Faria contava com a voz emocionada como salvou do fogo o indígena guató Vicente Manoel da Silva, de 79 anos, que vive isolado no entorno do Parque Nacional com 30 gatos. O jovem tenente falou que em dez anos de corporação nunca havia vivido uma situação tão dramática. As labaredas cobriam a copa das árvores e se aproximavam assustadoramente da casa, mas Vicente foi retirado a tempo. Absorto pelos feitos heróicos que Pedro contava, comecei a tossir e percebi a atmosfera esfumaçada. Foi então que ouvi pela primeira vez o grito maldito que iria me atormentar nos próximos dez dias: Fogo! Foooogo! Fogoooo! Um brigadista do Prevfogo de uniforme amarelo avisava que na margem oposta as chamas se aproximavam perigosamente. Não podia acreditar nos meus olhos. Pedro marcava o limite da minha aproximação quando meus pés começaram a doer. Olhei para baixo e entendi o que é o famigerado fogo subterrâneo do Pantanal. Sobre o solo há um acumulo de matéria orgânica em cinzas após o incêndio, mas basta um ventinho para essa cinza se transformar em brasa e a brasa em chamas.

AMEAÇA O indígena guató Vicente da Silva foi salvo pelas equipes de combate ao fogo (Crédito:Lawrence Wahba/Divulgação)

Na manhã seguinte, subi para a Fazenda Novos Dourados com o grupamento de brigadistas do Ibama/Prevfogo de Corumbá. Eram oito homens com profissões como catador de isca, sitiante, pescador, pedreiro e apicultor. Todos dependem muito do salario temporário de cerca de mil reais, que é acrescido de diárias quando trabalham fora de casa. No caminho paramos na Escola Jatobázinho, cujo entorno pegou fogo duas vezes. Um dos brigadistas disse uma frase marcante: “O fogo parece um “S”, onde passa e não queima, ele volta para queimar como se tivesse vida própria”.

Desci no pontal flutuante e subi ofegante o lance de escadas íngreme carregando minha bagagem. A primeira cena que vi foi a do veterinário Diego Viana inconsolável. Sobre uma gaiola de transporte ele tentava tratar, sem anestésicos injetáveis, uma capivara com as patas queimadas em carne viva. Diego assistia impotente a capivara ter espasmos de dor até que o animal entrou em óbito. Mal tive tempo de fotografar a capivara morta e os brigadistas do Prevfogo me chamaram. À medida que caminhávamos noite adentro eu via na prática os equipamentos que teoricamente conhecia: bomba costal, assoprador, abafador, enxada, cada qual com sua utilidade.

Os homens do Prevfogo são como um batalhão de elite no combate aos incêndios, mas para seu trabalho ser mais eficiente ele é reforçado pelos brigadistas comunitários que conhecem a região como ninguém. A caminhada foi longa e finalmente chegamos ao ponto em que estava estacionado um trator com uma caixa de água de mil litros. Alguns brigadistas exaustos comemoraram a chegada de reforços. Eles discutiam estratégias de combate às chamas e definiram que Joel Camilo, o Mineirinho, iria liderar um grupo morro acima que tentaria evitar a expansão de uma linha de fogo. Por acaso Mineirinho, brigadista com 12 anos de experiência, estava mapeando trilhas quando o fogo chegou. Juntos, abandonamos a estradinha principal e entramos numa trilha estreita na mata.

MORTE Apesar dos cuidados do veterinário Diego Viana, a capivara não resistiu (Crédito:Lawrence Wahba/Divulgação)

Eu seguia o som dos assopradores, espécie de aspirador ao contrário que serve para soprar para longe folhas secas e gravetos altamente combustíveis. Foi quando vi uma espécie de salão se abrir na mata à minha esquerda. O fogo marcava o chão em meias luas; subia nas folhas secas das palmeiras de acuri e cuspia brasas como as que eu havia visto cruzarem o rio São Lourenço na noite anterior. Parecia o cenário de um ritual satânico. Atrás de cipós em chamas vejo uma lanterna e ouço a voz de Mineirinho: “Assoprador, assoprador!“. Ele havia me confundido com um dos brigadistas, pois eu estava usando uma roupa antifogo. Foi aí que os heróis chegaram, a equipe do Prevfogo.

Faltou a música épica na trilha sonora, mas o zumbido ensurdecedor dos assopradores cumpriu a função. Vi uma brigada treinada no combate ao fogo atuando com a sincronia de uma orquestra, com cada instrumento fazendo sua função. Exausto e assustado voltei caminhando sozinho pela mata, tão chocado que nem medo conseguia sentir. Só sentia um gosto ruim na boca, um gosto de morte. Cheguei no alojamento, tomei um banho e não consegui dormir. Sabe a sensação de estar vivendo um pesadelo? Ali onde eu mergulhara em março, naquele Pantanal de paisagens majestosas e alagadas da Serra do Amolar, eu só via destruição. Mas percebi que, apesar da dor e da tristeza, não estava só. Havia um esquadrão de anjos ao meu lado lutando para combater aquele fogo infernal.