No social – Padre Júlio Lancellotti

Certo dia, em São Paulo, um noivo terminou a sua relação amorosa. A noiva perdeu um excelente marido. A população carente da capital paulista, no entanto, ganhou um anjo da guarda. Fim de noivado com ofensas? Desavenças? Cobranças? Nada disso, ela sabia da sinceridade do então pretendente, que lhe explicou que dedicaria a sua vida a cuidar das pessoas que carecem de auxílio, material e espiritual, exercendo dessa forma a sua vocação sacerdotal na religião católica.

Vida que segue; seguiu para ambos. Ela se casou com ótimo esposo (o nome do casal é aqui respeitosamente preservado). Eis agora um detalhe a parecer mera minudência, mas o leitor verá que tem relevância. Quem celebrou o casamento? Pois é, foi o anjo! Foi o anjo que São Paulo e o Brasil ganharam.

É claro que o leitor já concluiu: para poder celebrar casamento, então o anjo é padre. Sim. Trata-se do padre Júlio Renato Lancellotti, de 73 anos e toda uma vida dedicada à defesa dos direitos humanos, à defesa dos desvalidos, à defesa dos que não têm sequer a mais rouca voz social. Recebe ele, assim, da Editora Três que entre outros produtos de comunicação publica a revista ISTOÉ em suas formas impressa e digital, o mais importante prêmio da imprensa nacional, concedido a brasileiros que se destacaram ao longo do ano no trabalho por um Brasil democrático, justo socialmente, saudável e feliz — o padre Júlio, presbítero católico, é o BRASILEIRO DO ANO DE 2022 na área social.

Júlio é autor de diversos livros, e é um dos raros padres que é lido por representantes das mais diferentes religiões — e também por laicos, sejam progressistas ou conservadores. Essa unanimidade deve-se à sua coerência, acrescida da coragem em denunciar violências do Estado nacional contra homens, mulheres, crianças e imigrantes. Também em 2022 foi agraciado com o prêmio Juca Pato, como intelectual brasileiro, concedido pela União Brasileira dos Escritores. Duas obras foram fulcrais para esse reconhecimento: Tinha uma pedra no meio do caminho (Matrioska Editora), na qual aborda a sua atuação junto às pessoas em situação de rua, e Amor à maneira de Deus (Planeta), em que expõe esse sentimento como misericórdia, empatia e compaixão.

Por iniciativa do padre paulista Júlio Lancellotti, todos os dias são servidos, na cidade de São Paulo,500 cafés da manhã a pessoas em situação de rua 

Seja liderando a Pastoral do Povo da Rua, seja liderando a Pastoral da Criança, padre Júlio não deixa que láureas e premiações obnubilem sua consciência crítica. “O povo da rua carece de quem o abrace. A maioria das pessoas foge porque há cheiro ruim. Esquece que nem acesso á água esse povo abandonado tem”, disse Júlio à ISTOÉ. Ele é amoroso com quem merece delicadeza, perdoa setenta vezes sete os que erram inconscientes — como ensina o Evangelho de Mateus —, mas é tremendamente bravo, muito bravo mesmo, com aqueles que ferem os direitos humanos.

“A dignidade da pessoa humana tem de estar em primeiro lugar”, disse Júlio. Idêntica reação ele manifesta diante de pessoas famosas que tomam atitudes as quais, em sua concepção, agridem a dignidade humana. Exemplo disso são as suas declarações em relação a jogadores e ex-jogadores que gastaram até R$ 3 mil para se alimentarem no Qatar com carne folheada a ouro. “Estamos perdendo o senso do bem comum”, disse padre Júlio. “Devemos voltar a pensar no bem comum, e não somente no individual”.

Falando-se em bem comum, não restam dúvidas de que Júlio o distribui por onde passa: salvou a vida de torturados na ditadura militar, quebra pedras a marretadas sob pontes para que pessoas possam aí se acolher — conseguiu, com seu exemplo, que o Congresso derrubasse o veto de Jair Bolsonaro ao projeto de lei que proíbe a arquitetura hostil. Foi aprovada, assim, a Lei Júlio Lancellotti. Ele atuou na pandemia da Covid a ponto de ganhar um telefonema de cumprimentos do papa Francisco. “O papa quis saber como é o meu dia-a-dia de trabalho e me animou mais ainda”, disse Júlio. A ligação foi para a humilde Paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, na zona Leste paulistana. Essa é a paróquia do anjo.

Colaborou Fernando Lavieri