CIDADE TIRADENTES Dona Francisca prefere o estômago vazio a não dar um prato de comida aos netos: vida sem perspectiva (Crédito:RodrigoZaim)

Um motivo é a recessão que despencou sobre o País em 2014 e foi devorando os anos subsequentes. A causa principal, no entanto, é que em nosso chão, aquele que romanticamente foi consagrado como “em se plantando tudo dá”, o establishment político e social e o estamento burocrático governamental, com raríssimas exceções, pouco se importam com aqueles que vendem o almoço para comprar a janta ou sequer têm o almoço para vender.

Não adianta o governo que agora ocupa o Palácio do Planalto e nem adianta a Ministério da Economia dizerem que nada têm a ver com o assunto, uma vez que o levantamento do IBGE cobre um biênio anterior ao desembarque deles no poder. Não adianta! O presidente Jair Bolsonaro elegeu-se prometendo resolver a questão do desemprego, da carência e da fome. Quase dois anos de gestão, e nada, absolutamente nada. Até hoje ele não desceu do palanque para governar, sofre de transtorno obsessivo compulsivo pela reeleição e apresenta anoréxicos projetos para combater a pobreza — e, ainda assim, o faz porque guarda interesses eleitoreiros, no Norte e Nordeste, regiões mais castigadas pela insegurança alimentar. Não bastasse tudo isso, que atinge sobretudo crianças com menos de cinco anos de idade (6,5 milhões em todo País ) e as casas chefiadas por mulheres ou negros, veio a pandemia. E veio com ela mais desemprego. E, fatalmente, a disparada nos preços de comida básica.

“Aqui em casa, para cada boca só dá uma colherada de comida. Quando dá. Moro em quatorze metros quadrados, com três filhos adultos mas desempregados. E há os netos e bisnetos. A ponte de madeira que passa sobre o mangue, único meio de chegar em casa, dá medo. Passa gente toda hora, passa carrinho de bebê balançando, passa cachorro — e passa ratos. É tudo mangue”. Rute Rocha da Silva

SOBRAS Com seis filhos, Helen Rose apanha os restos deixados no chão no fim da feira da Cidade Tiradentes: o lixo é o único alimento (Crédito:RodrigoZaim)

ISTOÉ conversou com quatro famílias que moram nas palafitas da cidade paulista de Cubatão: O estômago ronca e nada de comida cai nele. É aí que a fome começa a comer para dentro. O nervo chamado vago, no cérebro, não quer saber se tem ou não alimento no prato marrom de vidro ou no panelão amassado, ele simplesmente avisa o intestino que a fome está presente e manda produzir ácido digestivo no estômago. Comida? Nada. Ar, só ar, e é esse ar combinado com o ácido que produz o ronco. Se vira rotina, como já virou para milhões de brasileiros, vêm as carências das vitaminas A, C, D e E, a carência de cálcio, ferro e zinco, de ácidos graxos essenciais. Vem a tontura, vêm os tremores, o cansaço, a irritabilidade, a dificuldade de concentração. Vem a mega sena que teima em não dar, vem o cachorro que teima em latir, a criança que teima em chorar, a mulher que teima em brigar — em casa onde falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. Vem a anemia, vêm as infecções… vem a morte. Crianças, quando sobrevivem, podem crescer com déficit cognitivo e estatura aquém do padrão saudável (na década de 1970, por exemplo, 30% de nossas crianças tinham altura abaixo do recomendável). “Quando a impossibilidade de comer se transforma no normal do dia a dia, o organismo reage comendo a si mesmo”, diz Aline Garcia, especializada em Serviços de Alimentação e nutricionista da conceituada Clínica Maia. “O corpo começa a tirar glicose e proteínas dos próprios músculos”. Quem fica sabendo de tanto sofrimento? Ninguém, a não ser os familiares que também passam fome. E lá em cima, muito lá em cima, disso sabem e dão de ombros as autoridades que nada fazem para eliminar a miséria crônica. Com isso, o que diz Bolsonaro? “Fala que se passa fome no Brasil. É uma grande mentira”. Mais: “Você não vê gente, mesmo pobre, com físico esquelético”. A resposta é simples e vem de 1946 com o clássico “Geografia da fome”, de Josué de Castro, um dos maiores geógrafos e cientistas sociais que o País já teve: “A fome não é um fenômeno natural, é um fenômeno social, produto de estruturas econômicas defeituosas”.

“Quando meus filhos vão dormir com fome, dou carinho. E digo que, amanhã, Deus vai prover. Meu barraco tem dois cômodos para quatro pessoas. Meu marido está desempregado, minha mãe entrevada, cuido dela também. Quando consigo trabalho de doméstica, olho a comida boa na casa da patroa, mas não como não. A patroa é boa, oferece, mas fico com culpa de comer sabendo que meus filhos estão de barriga vazia. Passei fome quando era criança. Agora são meus filhos que estão famintos”. Jerenildes Malaquias

CUBATÃO A família de Jerenildes convive com duas fragilidades: casa de palafitas e geladeira que só tem água (Crédito:RodrigoZaim)
RodrigoZaim

O Brasil foi e segue sendo um alto ronco de estômago de esfomeados e um alto ronco do fazer a sesta de governantes. Presidentes se sucedem, cada um faz seu próprio plano englobando e rebatizando planos anteriores. Hoje há o auxílio emergencial que envolveu 67 milhões de beneficiários dos R$ 600. Tudo bem, para quem não tem um ovo, R$ 600 é tudo; R$ 300 é tudo; R$ 10 é tudo. Mas só isso resolve? Para o faminto, não. Para o presidente Bolsonaro fazer a sua demagogia de pai dos pobres de plantão, em troca de votos, para ele a estratégia é boa. Fala o economista Marcelo Neri da FGV Social: “Os pobres foram ao inferno com o desemprego e chegaram ao céu com o auxílio emergencial. A redução do valor nas quatro últimas parcelas e o final do programa em dezembro tendem a agravar a crise. Se o IBGE fosse a campo em 2021, encontraria um cenário ainda pior em insegurança alimentar”. Fala Walter Belik, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e especialista em Insegurança Alimentar: “É muito provável que esse quadro apresentado já tenha piorado e piore ainda mais, uma vez que os programas de combate à fome foram desmantelados”.

RodrigoZaim

“Tenho seis filhos. Hoje (sexta-feira 18) comprei três cenouras, um pepino e três limões. É o jantar, vai ter de durar por três noites. Tenho um pouco de arroz e feijão. Perdi o emprego por causa desse vírus que está aí”. Bárbara Daniela dos Santos

Que a coisa já piorou é um fato, até porque a taxa de desemprego passou de 13,2% na terceira semana de agosto para 14,3% na última semana do mês — são 12,9 milhões de brasileiros nessa situação. E, como não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, o preço da comida mais básica disparou, praticamente anulando o efeito do auxílio emergencial. Tomem-se os últimos doze meses. O arroz subiu 19,2%, o feijão preto 28,92%, o feijão carioca 12,12%, o óleo de soja 18,6%. E o sempre barato frango tornou-se nobre: foi majorado 7%. Há saída? Sim, se as elites deixarem de ser autofágicas e autopredatórias. Na análise de Belik, há quatro fatores para a superação da insegurança alimentar: disponibilidade de alimentos, acesso a eles, oferta constante e a qualidade do produto. E, acrescente-se, destravar a produção já, e criar empregos já.

“Estou há dois dias sem colocar uma comida dentro do corpo. Meu companheiro e meu filho estão desempregados e a panela vazia. Moço, não vou mostrar minha casa porque tenho vergonha. Ah, adotei um cachorro, o Scooby. Quando temos o que comer, ele come também”. Cleusa Alves

ISTOÉ conversou também com três famílias da zona leste de São Paulo. Evocando e adaptando expressões de Machado de Assis, que passou fome na infância, nasceu no Morro do Livramento e era negro, algumas dessas pessoas “têm a resignação cristã”, mas todas “possuem a alma calejada da miséria”:

Uma das conclusões do levantamento do IBGE cruza diretamente a perversidade da cronicidade da fome com outras duas mazelas nacionais que parecem incuráveis. Uma é o preconceito contra os negros. Ele fica evidente na medida em que a pesquisa constata que lares por negros chefiados são mais privados de comida se comparados a casas onde o homem branco é o cabeça da família. Tanto é assim, que eles, os negros, chefiam 74% dos domicílios com insegurança alimentar. A outra mazela ocorre com os lares em que a maior parte da renda familiar, por mais ínfima que seja, vem do trabalho feminino. Ambas as questões têm origens tão históricas quanto a maior ou menor dificuldade de acesso à alimentação. Em uma república decretada como foi a nossa, na qual a maioria dos republicanos discursava contra o fim da escravatura porque era proprietária de grandes latifúndios, foi enorme a massa de negros que acabou sendo jogada nas cidades e abandonada a seu próprio destino, em um País onde o capitalismo ainda se mostrava incipiente. Sem trabalho, a miséria da tortura física da escravatura se torna a miséria igualmente física de não ter o que comer. Entre as duas, nenhuma é pior que a outra — tanto uma quanto outra são deploráveis. Em relação à mulher, foi ela sempre preterida dos centros de decisões, sempre recebeu remuneração inferior a dos homens brancos (mesmo exercendo idênticas funções que exigiam a isonomia), sempre teve pela frente obstáculos quase intransponíveis no campo do estudo, que, consequentemente, levaria a melhores salários.

FORTALEZA Segundo o levantamento do IBGE, a região Nordeste é uma das mais castigadas pela insegurança alimentar: fome recorrente (Crédito:JARBAS OLIVEIRA)

“Tá dando. Vou no final da feira para pegar as sobras e fazer sopa. Tenho seis filhos, todos estão sem peso por causa da falta de alimentação. Eu prefiro que eles jantem e não almocem para não dormirem com fome”. Helen Rose

Não se trata somente de um mês, um ano, uma década. O triste e trágico choro brasileiro dá-se dessa forma ao longo de cento e trinta anos republicanos. As mulheres chefiam 61% dos lares nos quais há insegurança alimentar. Sem dúvida, esse é um dos mais tristes estudos já feitos pelo IBGE. Triste, porém urgente e necessário. E poderá deixar de sê-lo se o governo atual e os governantes futuros lembrarem que a fome que eles não sentem é a fome que estufa de ar a barriga de infinito contingente de brasileiros e brasileirinhos.

“Tenho oito filhos, já grandes e desempregados, e netos. Na segunda-feira (dia 21), eu estava apenas com três pequenos pedaços de batata doce na geladeira. Mas me sobra valentia: enquanto eu viver, ninguém aqui morre de fome. Toda as manhãs, quando saio da cama, a primeira coisa que penso é: o que vou dar para os netos comerem?”. Francisca da Silva

“A fome é uma dor que começa no estômago. Entra na alma e aí a lágrima vem”. Lucas José de Oliveira