Superbactéria. A palavra está no grupo das que mais alarma médicos e cientistas de todo o planeta. Você, provavelmente, já ouviu o termo, usado para classificar bactérias que desenvolvem resistência a tratamentos que antes eram eficazes. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) oferecem uma dimensão do problema, apontando a resistência bacteriana como causa direta de 1,27 milhões de mortes no mundo. Para a OMS, esta é uma das maiores ameaças à saúde pública do século 21.
Em geral, o aumento da resistência das bactérias aos antibióticos acontece pelo uso desnecessário ou errado desse tipo de medicamento (como você vai entender melhor ao longo da reportagem). A última novidade sobre o tema, porém, é a descoberta de que analgésicos comuns, como paracetamol e ibuprofeno, também podem colaborar para acelerar o problema.
De acordo com um estudo da Universidade de South Australia, publicado recentemente na conceituada revista científica Nature, estes medicamentos teriam potencial para acelerar a resistência bacteriana juntos ou isoladamente. Os danos seriam ainda maiores, quando o uso dos analgésicos é combinado com antibióticos – uma situação também bastante comum, sobretudo em populações mais suscetíveis a infecções, como idosos.
Os pesquisadores avaliaram os efeitos de medicamentos não-antibióticos e de antibióticos – como o ciprofloxacin, indicado para tratar infecções dermatológicas ou do trato urinário e intestinal – com a bactéria Escherichia coli (E. coli). “Quando as bactérias foram expostas ao ciprofloxacin, em conjunto com ibuprofeno e paracetamol, apresentaram mais mutações genéticas do que ocorre quando são expostas apenas ao antibiótico”, explicou a professora Rietie Venter, que coordenou o trabalho, em comunicado à imprensa. Segundo ela, nesta situação, as bactérias se multiplicam em uma velocidade maior, além de se tornarem mais resistentes.
As bactérias também mostraram mais resistência a vários outros antibióticos, de diferentes classes. O estudo demonstrou ainda que tanto o ibuprofeno como o paracetamol ativam as defesas das bactérias para lutar contra os antibióticos e reduzir sua eficácia. “Resistência bacteriana não é mais só sobre antibióticos”, afirmou Venter.
Seleção de bactérias
Para a pneumologista Maria Cecília Maiorano, membro da Sociedade Brasileira de Pneumologia (SBP), a pesquisa é séria e aponta algo que até pouco tempo não era muito explorado. “O estudo mostrou que alguns medicamentos comuns, embora não matem bactérias diretamente, podem alterar a forma como elas se comportam, interferindo na resposta ao antibiótico, tornando-as mais resistentes, e alterando o ambiente em que vivem, o que facilita a seleção das bactérias mais fortes”, detalha.
A médica explica que a resistência bacteriana acontece quando as bactérias sofrem mudanças que as tornam capazes de sobreviver mesmo na presença de antibióticos que antes funcionavam contra elas. “Isso significa que infecções que antes eram fáceis de tratar passam a ser mais difíceis, podem durar mais tempo e até se tornar fatais”, afirma. “É uma preocupação mundial porque diminui a eficácia dos antibióticos disponíveis, aumenta o tempo de internação e os custos com saúde, além de elevar o risco de complicações e mortes”, acrescenta.
Como compromete a eficácia dos medicamentos, o aumento da resistência bacteriana dificulta ainda a realização de procedimentos médicos que dependem do uso preventivo de antibióticos, como lembra o médico Fábio Carra, clínico geral do Hospital Nove de Julho (SP). “É o caso de cirurgias, transplantes e tratamentos oncológicos”, exemplifica.
O mecanismo por trás do aumento da resistência das bactérias é o seguinte: toda vez que se usa um antibiótico, as bactérias sofrem uma “pressão seletiva”. As mais sensíveis morrem, mas as que têm algum mecanismo de defesa contra o remédio sobrevivem – e se multiplicam. “Quando o antibiótico é usado sem necessidade ou de forma incorreta, como interromper o tratamento antes do tempo, esse processo acontece ainda mais rápido. O resultado é que ficamos com um número cada vez maior de bactérias resistentes circulando na comunidade”, afirma Maiorano.
Idosos no alvo
A maior preocupação, de fato, é com grupos mais expostos aos riscos, como os idosos, que costumam usar vários medicamentos ao mesmo tempo, muitas vezes de forma contínua. “Isso aumenta a chance de interações entre drogas, assim como a de que alguns remédios influenciem a resposta das bactérias”, explica a médica.
O cirurgião Fábio Carra concorda com a relevância da pesquisa australiana. “É um sinal de alerta, uma vez que idosos estão mais suscetíveis a internações e infecções”, avalia. “Esta população, por conta da maior prevalência de comorbidades, está sujeita ao uso de um número maior de medicamentos. Caso estes medicamentos gerem bactérias mais resistentes, isso pode prolongar os períodos de tratamento, assim como das internações e, além disso, aumentar a morbilidade [número de doentes] e a mortalidade”, completa.
Isso quer dizer que agora é preciso mais cautela na hora de tomar um remédio para dor de cabeça ou febre? O estudo, de fato, reforça a necessidade de prescrição criteriosa de antibióticos e de outros medicamentos. Segundo Maiorano, no entanto, há necessidade de novos estudos, em humanos, já que estes achados ainda são laboratoriais. “As descobertas são razões para cautela, mas ainda não são prova definitiva de que o efeito esteja ocorrendo com todas as pessoas”, pondera.