A van estaciona no meio do canavial e, dentro dela, uma senhora aguarda que lhe tragam um punhado de terra. O portador traz o quinhão e conta a respeito dos resultados de mais de duas décadas de trabalho naquela área: discorre sobre a textura e a umidade do solo – íntegras, apesar da falta de chuva no interior paulista na ocasião -, seu cheiro, cor, microbiologia, classificação científica…

A senhora olha a terra na mão do sujeito, pega um pouco, avalia a textura e concorda, com um meneio de cabeça, que era, de fato, um bom solo. Um solo vivo.

Essa situação ocorreu em 2012 e está registrada em vídeo. Os personagens eram o maior produtor e exportador de açúcar orgânico do País, Leontino Balbo, do Grupo Balbo e criador da marca Native, e a senhora, na época com 91 anos, uma de suas inspirações na lida do campo: a engenheira agrônoma Ana Maria Primavesi, que faleceu em 5 de janeiro deste ano e completaria, no dia 3 de outubro, 100 anos.

Assim como Leontino Balbo, que cultiva 20 mil hectares de cana-de-açúcar orgânica e certificada em Sertãozinho, na região de Ribeirão Preto (SP), Primavesi contribuiu com milhares de outros produtores rurais no sentido de buscar uma agricultura limpa, sem uso de venenos ou adubos químicos, e com base em muita observação e na interação entre planta e solo – que, no caso dos trópicos, deve ser vivo, ou seja, repleto de microrganismos que interagem com os minerais e vegetais, num fino equilíbrio.

“A base da agricultura tropical é a riqueza de microrganismos no solo, que, ao contrário dos solos de clima temperado, é pobre de nutrientes, mas rico em vida”, costumava ensinar a agrônoma. “E o que a agricultura convencional tem feito é justamente matar essa riqueza, tratando os microrganismos como patógenos; eles não são patógenos, são mobilizadores de nutrientes e a garantia de fertilidade”, arrematava. “Solo saudável, planta saudável, ser humano e animais saudáveis”, era outro de seus mantras.

Pode-se dizer, sem exagero, que, se alimentos orgânicos multiplicam-se hoje nas prateleiras dos supermercados, nas feiras livres, lojas de produtos naturais, deliveries e sacolões, essa engenheira agrônoma nascida na Áustria e radicada no Brasil por mais de 60 anos teve tudo a ver com isso.

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Foi ela quem lançou as bases da agroecologia em solos tropicais, há 41 anos, ao publicar seu livro “Manejo ecológico do solo”, um manual que traduz a ciência da vida contida na terra para que o agricultor a aplique na prática e até hoje é livro de cabeceira para uma infinidade deles. “É uma obra muito importante porque chama a atenção para alguns aspectos da agronomia e da agricultura que a ciência acadêmica convencional insistia, naquela época, em ignorar”, conta ao Estadão Leontino Balbo, que se formou em agronomia em 1984, na Unesp de Jaboticabal.

Sobre a visita de oito anos atrás aos canaviais da Usina São Francisco, em Sertãozinho (SP), Balbo lembra que Primavesi “não era de conversa fiada”. “Não estava nem aí se a elogiavam ou admiravam. Estava é preocupada se os seus conhecimentos estavam sendo aplicados ou não”, continua. “Eu provei a ela que sim e ainda disse que, para mim, essas práticas eram o futuro da agricultura.”

Ao citar vários outros pesquisadores que também foram importantes para seu trabalho de recuperação do solo, como Vladimir Vernadsky, Rudolf Steiner, Darwin, Goethe e Justus von Liebig, o produtor de cana orgânica diz que, “conceitualmente”, foi fundamentalmente inspirado por eles. “Mas, no campo prático, foi a Primavesi; meu exemplar de Manejo Ecológico do Solo está até desgastado de tanto que eu consulto.”

“Foi a primeira, e talvez única vez, que eu vi um livro de agricultura se tornar best seller”, confirma a pesquisadora especializada em ciência de solos Maria Leonor Lopes Assad, professora aposentada do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que participou da criação do programa de agroecologia da universidade.

A cientista acredita que o sucesso do livro, além da carência de informações sistematizadas sobre agroecologia tropical na época, ocorreu porque Ana Primavesi “foi a primeira a falar de uma forma aberta e simples e que muitos entendiam”. “Seu grande mérito foi apresentar de forma simples conhecimentos que são as aulas número 1, 2 e 3 de manejo e conservação do solo na academia.”

“Ela era muito combativa”, continua Maria Leonor. “Lembro de um documento preparado por um renomado professor da Esalq-USP, que leu o livro de Primavesi da primeira à última página e detectou vários equívocos; alguns válidos, outros não”, continua a pesquisadora. “Mas os possíveis equívocos não invalidam a importância do livro e do trabalho dela”, diz, acrescentando que o objetivo da engenheira agrônoma sempre foi mostrar que o tipo de agricultura que até hoje se pratica contribui para causar doenças no solo, nas plantas e nos animais, concentra terras e empobrece não só o solo, mas também o agricultor, “tornando-o cada vez mais dependente da indústria de adubos químicos sintéticos e dos agrotóxicos”.

Por antever essa situação, principalmente o empobrecimento dos solos nos trópicos, Maria Leonor classifica Ana Primavesi como “um ícone, um marco, no sentido de se contestar a agricultura convencional”. “E agora podemos comemorar os 100 anos de Ana Primavesi tendo o orgulho de ver que ela foi uma pioneira.”

Leontino Balbo acrescenta que o trabalho de Ana Primavesi lhe chamou a atenção porque se baseia em quatro pilares: a importância da bioestrutura do solo, a interação radicular da planta com a vida animal do solo – “Eu usei muito isso no meu trabalho”, diz -; a importância da manutenção de matéria orgânica no solo e os benefícios dos adubos verdes, “que são muitos”.

Também entre produtores familiares e assentados da reforma agrária, Ana Primavesi é referência. No Movimento dos Sem-Terra (MST), que se tornou o maior produtor de arroz orgânico do País, com 15 mil toneladas colhidas na última safra, engenheiros agrônomos e técnicos agrícolas repassam diariamente aos produtores os seus ensinamentos, diz o agricultor e técnico agropecuário do MST José Maria Tardin. Ele afirma ao Estadão que, à medida que se estuda agroecologia, “não tem como não se deparar com Ana Primavesi”. “Tanto ela quanto seu marido, Artur Primavesi, fizeram pesquisas fundamentais para qualquer tipo de agricultura que pretenda ser de base ecológica.”

Atualmente, Tardin promove a agroecologia em cursos para as famílias assentadas e acampadas e ensinando e capacitando técnicos agrícolas por meio do Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST. Também na América Latina, por meio da Via Campesina, apoia a criação de cursos e escolas técnicas de agricultura – sempre tendo como base a agroecologia.

Tardin conta que conviveu em várias oportunidades com Ana Primavesi, a partir de 2002, quando o MST realizou o primeiro Encontro da Jornada Estadual de Agroecologia, no Paraná. “Ela teve uma atuação militante pela agricultura ecológica, deslocando-se pelo Brasil e pela América Latina dando cursos, palestras, fazendo atividades de campo e formando estudantes de ciências agrárias em processos autônomos, fora da universidade”, lembra Tardin.


No meio acadêmico, além de ter se formado em 1942, com mestrado em Agronomia na Áustria, Ana Primavesi lecionou por 12 anos na Universidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, entre 1962 e 1974, onde também realizou pesquisas sobre biologia no solo, juntamente com seu marido, Artur, que fundou o Instituto de Solos e Culturas no câmpus gaúcho. “Nas aulas nos assentamentos, ela não fazia questão de exibir conceitos complexos, a não ser que as pessoas pedissem”, lembra Tardin, que também teve a oportunidade de promover cursos com Ana Primavesi na Escola Latino-Americana de Agroecologia, no Assentamento Contestado, no município paranaense de Lapa.

“Ela não tinha essa empáfia academicista, de falar termos rebuscados; mas se alguém porventura dissesse que queria entender mais conceitualmente, ela desenvolvia o pensamento”, continua. “Desde que começaram os grandes encontros de agroecologia, a partir dos anos 1990, ela não falhava em um.”

Nos contatos diretos com agricultores, Tardin conta que Ana Primavesi sempre recomendava “olhar o solo”. “Ela dizia que a gente tinha que ‘conversar’ com a terra, cheirar, sentir com as mãos, ficar atento à sua aparência, consistência, e, a partir daí, começar a entender o que se passa com o ambiente no entorno e as plantas”, lembra. “No caso das plantas, ensinava a observar as raízes, as folhas, para detectar o que poderia estar faltando de nutrientes; era sempre um ensinamento bastante prático e efetivo.”

E nunca se furtava a responder a qualquer pergunta, de um jeito “muito humano e sensível, o que atraía bastante as pessoas em torno dela”, afirma. Para Tardin, os conhecimentos transmitidos por Ana Primavesi aos assentados, agrônomos e técnicos agrícolas “criou no MST uma capacidade cada vez maior e melhor de fazer a passagem da agricultura de base industrial, química e sintética para uma agricultura agroecológica”. “Tanto que a partir dos anos 2000 o MST começou a adotar a agroecologia como política e passou a converter grandes áreas para esse sistema de cultivo.”

Ele informa que, atualmente, pelo menos 50 mil famílias ligadas ao MST, em 24 Estados, adotaram cultivos agroecológicos.

O também agrônomo e presidente do Instituto Brasil Orgânico (IBO), Rogério Dias, conta que quando Ana Primavesi lançou seu livro sobre manejo ecológico do solo “pouco se falava em perda de biodiversidade no País”. “Ouvíamos sobre ecologia nos meios urbanos, não no meio rural”, observa. “E a dra. Ana já falava disso.”

Como presidente do IBO, Dias conta que, atualmente, é clara a busca de vários produtores convencionais por métodos mais sustentáveis de produção. “São agricultores que percebem a ‘falência’ do pacote químico, em termos de gastos excessivos com insumos e também de problemas de saúde, além da percepção da maior consciência da população em relação à preservação ambiental.”

Ele comenta, porém, que, mesmo entre produtores interessados em fazer a transição agroecológica, há aqueles que querem um “pacote pronto”. “Infelizmente, ainda tem gente no movimento orgânico que está na lógica do ‘pacote’, que é como funciona a agricultura convencional, com o pacote adubo químico-sementes transgênicas-agrotóxicos”, lamenta. “Mas, quando eles percebem que têm de ter uma visão sistêmica, inevitavelmente se deparam com a Primavesi.”

Para Dias, que mantém um cultivo orgânico nos arredores de Brasília, “sempre foi claro” que, como Ana Primavesi preconizava, “tudo começa com o solo”. “O solo sempre foi minha obsessão; nunca pude ver um solo descoberto, exposto”, continua. “Isso é uma coisa que tem de ser trabalhada o tempo todo, para que o solo possa estar cada vez mais vivo, e hoje vejo resultados fantásticos.”

Sob esse aspecto, um dos principais ensinamentos da agrônoma Primavesi era que uma planta necessita de pelo menos 45 tipos de nutrientes para crescer saudável e conseguir, paralelamente, criar defesas naturais contra pragas e doenças. E a agricultura convencional trabalha com apenas três macronutrientes (nitrogênio, fósforo e potássio) e poucos micronutrientes, como zinco, cobre, ferro, manganês molibdênio, boro e cloro. Já na agroecologia e com um solo vivo, a riqueza de nutrientes garantida pelo solo nutre a planta – e, consequentemente, os seres humanos.

Dias avalia que, com todos esses ensinamentos, “cada dia mais atuais”, Ana Primavesi “influenciou gerações”. “Ela teve a capacidade de falar para várias gerações; seus ensinamentos não foram ficando para trás, pelo contrário. Cada vez mais estamos tendo provas científicas de que tudo aquilo que ela preconizava, as relações entre microrganismos no solo e a saúde das plantas, além da sustentabilidade dos cultivos, era verdade.”

Quanto à agricultura convencional, Dias acha que aos poucos “ela vai se render” a processos mais sustentáveis e que garantam a fertilidade de fato do solo. “Vários produtores estão se voltando a isso porque não têm mais para onde correr”, observa.


Na Embrapa Cerrados, em Brasília, por exemplo, uma tecnologia desenvolvida ali traria uma imensa satisfação a Ana Primavesi, acredita a pesquisadora Ieda Mendes, especializada em microbiologia do solo. “Nós desenvolvemos uma análise alternativa da qualidade do solo, que mede o nível de vida por meio de duas enzimas”, explica ela, acrescentando que a análise convencional de solo baseia-se apenas na sua composição química, e não biológica. “É uma visão que não vai muito além do excesso ou deficiência de nutrientes”, comenta, adicionando que a bioanálise do solo vai de encontro com o que Ana Primavesi pregava, de se observar a importância da vida microbiológica como condicionante da fertilidade.

“É uma pena que a dra. Ana não esteja mais aqui para ver esse tipo de análise sistematizada, que virou realidade”, diz Ieda. “Agora podemos oferecer aos agricultores, em maior escala, tudo o que ela ensinava e fazia empiricamente.” A pesquisadora explica que, com a ferramenta, é possível constatar a “saúde” do solo. “Seria uma honra apresentar a tecnologia para ela.”

O jatobá ‘reencarnado’

Em um sítio agroecológico em Amparo (SP) há um canteiro com quatro jatobás que não são “quaisquer jatobás”. Suas mudas foram feitas pela própria Ana Primavesi e dadas de presente aos convidados de seu aniversário de 95 anos. No Sítio Duas Cachoeiras, que hoje abriga o Jardim Botânico Araribá, o produtor agroecológico e educador ambiental Guaraci Diniz reservou um local para formar o “Bosque Ana Primavesi” e ali plantar essas árvores, uma das espécies preferidas da engenheira agrônoma, por suas propriedades medicinais – ela também detinha conhecimento em fitoterápicos.

Diniz conta que, além do seu jatobá, recebeu, como doação, outros três, de outros convidados à festa de Ana Primavesi, para formar o bosque tão especial.

Assim como muitos outros agricultores, leu “até gastar” os vários livros de Ana Primavesi sobre

agroecologia – são pelo menos dez já publicados, além do Manejo Ecológico do Solo. “Quando eu vim morar no sítio, o solo estava bastante degradado”, conta. Entretanto, a ideia não era fazer uma agricultura à base de adubos químicos e agrotóxicos. “Comecei a pesquisar, fui tomando conhecimento de várias técnicas de agricultura sustentável, como permacultura, depois a agricultura natural de Mokiti Okada… Com a fundação da Associação de Agricultura Orgânica (AAO) – do qual Ana Primavesi é a membro número 1 -, tomei conhecimento do trabalho dela”, conta Diniz, que passou a aplicar os seus conceitos.

Hoje, Guaraci recuperou o solo do sítio, de 36 hectares e, de quebra, reflorestou a área com espécies nativas ao longo de mais de 30 anos, instituindo ali a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Duas Cachoeiras e, mais recentemente, o Jardim Botânico Araribá (JBA).

“Primavesi nos ensinou a forma de trabalhar, de fazer compostagem, de perceber quais eram as plantas companheiras e as que não são, além das indicadoras de solos, que, ao crescerem em determinadas áreas, mostram o que pode estar ocorrendo naquele lugar em termos de nutrientes ou acidez.”

Sob esse aspecto, ele conta que aliar o trabalho do solo com o ciclo das plantas, como ensinava Ana Primavesi, fez com que ele visse as plantas “não como inimigas ou pragas, mas sim como elas funcionam no ecossistema e o que indicam ao crescer ali”.

“O sapé, por exemplo, cresce em áreas ácidas, com pH 5 a 5,5, e a ‘mãe do sapé’, em solos mais ácidos ainda”, explica. “Para contornar essa questão, a receita de Ana Primavesi era trabalhar com adubação verde, fazendo um ‘colchão vegetal’ sobre o solo, beneficiando o surgimento de microrganismos que decompõem a palhada, num ciclo benéfico, entre várias outras técnicas agroecológicas”, diz. “Com isso, vai surgindo outra microvida, e o solo vai se recuperando.”


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