Toda vez que a Igreja Católica quer colocar ordem na casa, ela recorre aos jesuítas — aliás, foi justamente para fazer uma limpeza ética e parar de perder seguidores que foi criada no século 16, na parisiense Montmartre, a Companhia de Jesus, liderada por Iñigo López de Loyola. Ao logo do tempo, os jesuítas atuaram em funções discretas, sobretudo na doutrina e catequese, mas sempre nesse mesmo propósito. Ocorre, porém, que a Igreja fechou tanto os olhos para os abusos e a corrupção que frequentavam seus bastidores que eles começaram a se mostrar publicamente e precisou-se, então, de um rígido jesuíta no mais alto posto da hierarquia católica. Assim, o cardeal Jorge Mario Bergoglio foi escolhido papa, em 2013, pelo conclave que se formou logo após a abdicação de Bento XVI. Dito e feito: desde que assumiu o Vaticano, não há poderoso eclesiástico que cometa crimes e siga impune. Foi o que aconteceu, na semana passada, com um dos cardeais mais influentes de toda a Santa Sé: Angelo Becciu. O papa Francisco ordenou que ele seja julgado por ter desviado verbas do Vaticano para a construção de um edifício de luxo, em Londres. “Até ontem, eu me sentia um amigo do papa, o seu fiel executor”, afirmou Becciu. “Agora, quando tudo foi descoberto, Francisco disse que não tem mais fé em mim”. Uma fonte anônima dos corredores do Vaticano — que, na verdade, são ricos em fontes anônimas — declarou: “Angelo Becciu era o único que lhe dizia as coisas tal como eram. E Francisco confiava muito nele”.

O impossível não existe

O prestígio de Becciu de nada adiantou para lhe salvar do tribunal do Vaticano: ele está responsabilizado juntamente com outras nove pessoas envolvidas no financiamento fraudulento, e todos serão julgados por peculato, abuso de poder e suborno de testemunha. Francisco acabou de editar novas regras de combate à corrupção, com a finalidade de aumentar a transparência entre os gestores do banco do Vaticano e os cardeais — e, claro, punir quem tiver de ser ser punido, seja ou não seu amigo pessoal de longa data. A construção do edifício em Londres, que agora leva Becciu ao banco dos réus, deu-se em 2014. Foram gastos mais de 200 milhões de euros (cerca de R$ 1,4 bilhão) para transformar dezessete mil metros quadrados em cinquenta apartamentos luxuosos, no bairro de Chelsea.

Desprezando a humildade que caracteriza os jesuítas, que chegam muitas vezes ao voto de pobreza, Becciu, à época número dois da Secretaria de Estado do Vaticano, achou ser merecedor de opulência. Francisco não mede esforços para alinhar a Igreja nos trilhos da ética, com o propósito de reduzir a diáspora de fiéis. A sua maneira de atuar transcende, no entanto, a condição de católico ou não católico. Envolve, isso sim, todo ser humano que zela pela honestidade e retidão de caráter. Não é sem motivo, portanto, que ele é admirado até por aqueles que se declaram ateus, e, também desses, recebeu rezas no domingo passado, quando teve de se submeter a uma cirurgia simples no intestino.

Francisco é tempestade no Vaticano. Mas uma coisa é certa: não foi para promover a calmaria que um jesuíta se tornou pontífice

Em sua política de enfrentamento à corrupção, o papa proibiu que qualquer funcionário do Vaticano receba presentes que custem mais de 40 euros. Além disso, de tempos em tempos, todos têm de declarar seus investimentos financeiros. A sua missão é difícil, mas não é impossível — até porque, naquilo que de fato parecia ser impossível, também aí Francisco vem colhendo bons resultados, graças a sua coragem de agir com transparência. Trata-se do desmonte da prática de abuso sexual. Ele expulsou da Igreja Católica um dos religiosos chilenos mais respeitados, o ex-arcebispo José Cox Hunees, sobre quem recaíam acusações de pedofilia. Pelo mesmo motivo, baniu o também chileno Antonio Órdenes Fernandéz. O papa Francisco é, sem dúvida, tempestade dentro da instituição. Mas uma coisa é certa: não foi para promover a calmaria que, pela primeira vez, um jesuíta se tornou pontífice.