Quando o vídeo de um ataque racista contra um vendedor de rua muçulmano no Rio de Janeiro viralizou, cariocas e turistas se espantaram: será que o Brasil também teria sido atingido pela onda xenofóbica que varreu o mundo?

A resposta foi um não afetuoso – uma enxurrada de solidariedade, que transformou o humilde vendedor em um herói popular, embora a verdade sobre suas desventuras sejam bem diferentes das que se pensava inicialmente.

Tudo começou em 3 de agosto, quando Mohamed Ali Abdelmoatty Kenawy, de 33 anos, trabalhava na carrocinha onde ele vende esfihas em pleno centro de Copacabana.

De repente, um homem calvo e atarracado, armado com dois pedaços de pau, aparece, gritando para Kenawy, que chegou ao Brasil há três anos e desde então é chamado de “o refugiado sírio”.

“Saia do meu país!”, gritou o homem. “Eu sou brasileiro e estou vendo meu país ser invadido por esses homens-bomba miseráveis que mataram crianças, adolescentes. São miseráveis!”, prosseguiu. “Vamos expulsar ele!”, conclamou.

Magro, de cabelos pretos e óculos, Kenawy não tentou reagir. Apenas pegou a comida que ficou espalhada quando sua carrocinha foi atacada.

O incidente poderia ter tido um fim pior, se não fosse a jovem Beatriz Bastos de Sousa, de 19 anos, que, em meio ao número crescente de curiosos que observava a cena, começou a filmar tudo com seu celular.

“O homem começou a chutar a carrocinha e depois começou a chutar e socar Mohamed”, contou ela nesta quinta-feira. “Havia três ou quatro deles, não era só um, e eu fui para o meio, dizendo, ‘parem, por favor'”, lembrou.

Deprimido, Kenawy evitou trabalhar nos dois dias seguintes. “O homem não quebrou minha carrocinha”, disse ele à AFP. “Ele quebrou minha felicidade”.

Beatriz, no entanto, saiu determinada a fazer algo.

Depois que Kenawy negou seus apelos de fazer um boletim de ocorrência, ela mostrou o vídeo que tinha feito a policiais.

“Eles disseram, ‘apague isso, não vai dar em nada'”, prosseguiu.

Então, Beatriz, que trabalha em uma agência de viagens, enviou o vídeo para um grande jornal, que tampouco respondeu.

Mas as imagens chegaram a um veículo menor e, de repente, “meu vídeo estava em toda parte”, contou a moça.

O resultado foi extraordinário.

Logo, Kenawy, o ambulante, faria uma entrevista no mesmo jornal que recusou sua história. Milhares de pessoas se organizaram um ‘Esfihaço’ pelo Facebook para comprar seus produtos e o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, entregou a ele pessoalmente uma licença para vendedores ambulantes difícil de conseguir.

Nesta quinta-feira, a Assembleia Legislativa transformou Kenawy em cidadão honorário do estado do Rio.

“Eu sabia que os brasileiros eram gentis, mas depois disto, uau!”, contou Kenawy, assombrado. “Não sei como expressar meus sentimentos”, continuou.

– ‘Diferentes Brasis’ –

Kenawy agora virou sinônimo de tolerância na imprensa brasileira – o sobrevivente da guerra na Síria, que se recusa a retrucar quando confrontado com violência.

“Ele demonstra o desejo de paz e prosperidade compartilhado por todos que buscam refúgio no Brasil”, disse o deputado estadual Wanderson Nogueira (PSOL-RJ), que motivou a homenagem do Rio a Kenawy.

Pouco mais de cinco minutos depois, na esquina onde Kenawy trabalha em Copacabana, pedestres e motoristas o saúdam, aos gritos de “Parabéns, Mohamed!”. Alguns param para tirar uma foto com ele.

Um roteiro de filme se não fosse por um detalhe: Kenawy não é nem refugiado, nem sírio.

Embora sua família tenha, sim, origens na Síria, ele é cidadão egípcio e se mudou para o Brasil em busca de um futuro melhor depois que seu restaurante teve que fechar.

No Brasil, ele nem chegou a pedir refúgio, mas conseguiu a residência permanente após se casar com uma brasileira, com quem agora tem um filho de três meses.

“Eu não estive em uma guerra”, acrescentou.

Mas é o arquétipo do imigrante sem recursos, trabalhador e ambicioso. No Rio, ele começou a vender esfihas em um tabuleiro, depois em uma carrocinha.

Agora, ele sonha em ter um ‘food truck’.

O ataque xenófobo de que foi vítima tampouco pode ter sido o que pareceu.

Embora tenha tido natureza racista e violenta, o motivo pode ter tido mais a ver com a disputa por pontos de venda entre os ambulantes, segundo a imprensa local.

Beatriz conta que Kenawy pode ter incomodado uma pequena máfia que controla os pontos de venda nas ruas da cidade.

E uma entre as muitas pessoas que se reuniam em volta da carrocinha de Kenawy disse ser injusto que o recém-chegado tenha conseguido o ponto em uma esquina onde antes trabalhavam locais.

Mas independentemente dos detalhes, o conto de fadas do egípcio encantou os brasileiros.

Castigados pela recessão, pela violência e pela corrupção, talvez se sintam felizes em ser lembrados por sua generosidade.

“Eu acho que esse foi o retrato dos vários Brasis o que aconteceu: o Brasil que acolhe, o Brasil que é preconceituoso, os vários Brasis de hoje, que a gente desconhecia”, resumiu o cantor Juli Mariano, de 50 anos, que declarou seu apoio ao imigrante, comprando uma esfiha nesta quinta-feira.

“A gente sempre achou que no Brasil não tinha preconceito, que todos éramos acolhedores, e esse evento provou que não. Mas acho que o que prevalece é o acolhimento”, concluiu.