O ano era 2005 quando, certo dia, a funcionária que trabalhava na casa dos pais da arquiteta Miriam Morata, 66, comentou que o patrão, Rubens, havia chegado do trabalho e deixado o carro ligado no meio da rua. Ela estranhou, mas atribuiu o comportamento ao estresse. Parecia mesmo uma explicação plausível. Com o tempo, porém, outras atitudes intrigantes começaram a ser percebidas. Rubens sumia e demorava a voltar. “Pode ser que ele esteja lá fora, procurando pelo cachorro de estimação, que saiu”, dizia a mãe de Miriam, Encarnação.
Até que tudo mudou, na mesa, durante um almoço. “Me lembro que ele comentou sobre algum trabalho pelo qual tinha pago, cuja entrega não havia sido feita, como combinado. Sugeri que ele sustasse o cheque”, recorda-se Miriam. Foi então que seu pai fez uma pergunta, que foi o primeiro indício de uma turbulência. Ele, que era empresário, habituado a lidar com finanças e serviços bancários, perguntou à filha: “O que é sustar?”. Quando Miriam começou a explicar o termo, ele fez outra pergunta: “O que é cheque?”. Definitivamente, não era só estresse.
Ao buscar atendimento médico para o pai, Miriam deu, literalmente, com a cara na porta. “Eu o levei a um hospital, onde ele seria avaliado por uma psiquiatra. No tempo em que fui procurar um local para estacionar o carro, eles já haviam sido atendidos. “Eu quis conversar com a médica, mas ela só disse ‘seu pai tem Alzheimer e não pode mais ficar sozinho’”, conta. Miriam perguntou o que era isso, em vez de responder, porém, a médica chamou o paciente seguinte e bateu a porta. Ela se viu sozinha, sem entender o que estava acontecendo e muito menos quais seriam seus próximos passos.
A arquiteta ainda não sabia, mas, a partir dali, passou a fazer parte de um grupo de pessoas que vivem esquecidas ainda hoje: o dos cuidadores de pessoas com demências, entre eles o Alzheimer. As informações eram tão escassas, que ela decidiu compartilhar suas experiências em um blog. Quem sabe sua história se tornasse visível? Quem sabe alguém se identificaria? Quem sabe alguém ofereceria ajuda? Não aconteceu. Pelo menos, não tão cedo.
O Alzheimer é o tipo mais comum de demência. Trata-se de uma doença neurodegenerativa progressiva para a qual, até o momento, não há cura. De acordo com a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), a condição é causada pelo acúmulo anormal de certas proteínas no cérebro, que causam danos às células. Além de comprometer, principalmente, a memória, pode afetar a linguagem, o raciocínio, o humor, a orientação e, em fases avançadas, as funções motoras.
A doença de Rubens evoluiu rapidamente, levando-o a falecer dentro de um ano. Mas a jornada de Miriam com a doença estava longe de terminar. Oito anos depois, quem começou a agir de maneira estranha foi Encarnação, que também foi diagnosticada com Alzheimer e passou a depender dos cuidados da filha até a sua morte, em 2015.
Cuidado invisível
Segundo estimativas do Ministério da Saúde, cerca de 1,2 milhões de pessoas vivem com Alzheimer no Brasil e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano. “Com o envelhecimento da população, esses números tendem a aumentar. É uma questão urgente”, alerta o professor Walter Teixeira Lima Junior, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coautor de uma pesquisa brasileira inédita sobre a realidade dos cuidadores de pessoas com demências no país, publicada em junho deste ano na revista científica Alzheimer’s & Dementia: Translational Research & Clinical Interventions.
A pesquisa coletou dados de mais de 700 cuidadores brasileiros de pessoas com síndromes demenciais, jogando luz sobre suas carências e necessidades não atendidas, além da sobrecarga emocional e dificuldades de ordem financeira. O estudo mostrou que as mulheres são as mais responsabilizadas pelo trabalho de cuidado: 9 entre 10 cuidadoras são filhas, esposas ou noras, na faixa dos 50 anos. Quase todas (94,9 %) oferecem essa assistência sem qualquer remuneração e 42,8 % tiveram de abandonar o emprego para dedicar-se integralmente ao familiar com demência. As consequências são devastadoras: 85 % relatam exaustão emocional e 78 % cansaço físico constante.
Miriam viveu essa realidade ao longo dos anos dedicados aos cuidados e preocupações, sem nenhum tipo de ajuda. As marcas físicas e emocionais permanecem para sempre. “Vai fazer 10 anos em dezembro que a minha mãe faleceu, e ainda sinto dores no ombro [por conta do esforço físico para cuidar dela]. Anos depois da morte dela, eu ainda a ouvia me chamar no quarto. Eu me levantava correndo, ia até lá e via a cama vazia. Era assustador”, recorda-se. “Mesmo depois que a pessoa que precisou desses cuidados morre, o familiar cuidador nunca mais será a mesma pessoa. Seremos sempre alguém com uma ferida escancarada”, completa.
Miriam admite que, durante os dias mais difíceis, chegou a ter pensamentos suicidas. “Quando você convive com a demência, você enlouquece junto. Pensava até em colocar um botijão de gás no meio da sala e explodir tudo. Isso porque sabia que não poderia morrer antes e deixá-la sozinha. Senão, quem cuidaria dela?”, confessa a arquiteta.
Um longo (e urgente!) caminho
Os números levantados pelo grupo de pesquisadores da Unifesp representam uma amostra de um problema que já parece enorme – mas é, provavelmente, ainda maior do que aparece nos dados, considerando os casos de barreiras sociais, geográficas e econômicas para o diagnóstico. Para o professor Walter Teixeira Lima Junior, é urgente avançar na implantação de políticas públicas, na compreensão da doença e no apoio prático a esses cuidadores. “São pessoas que não podem seguir sozinhas e invisibilizadas”, diz o coautor do estudo.
Ainda que a passos vagarosos, algum progresso vem acontecendo nos últimos anos. Em 2024, foi aprovada a Lei 15.069, que instituiu a Política Nacional de Cuidados no Brasil. Entre os pontos, o texto propõe uma divisão mais justa da responsabilidade de cuidados entre homens e mulheres, além de definir os deveres do Estado, da sociedade e do setor privado. A lei prioriza cuidados parentais, de pessoas com deficiência, idosos e cuidadores – remunerados ou não. Entre as promessas, estão a ampliação dos serviços de atendimento domiciliar e a criação de centros que promovam o cuidado coletivo.
É um começo, mas conforme aponta Lima Junior, é necessário que tudo isso saia do papel o quanto antes. “Ainda é preciso planejar, destinar verba de orçamento nacional, estadual, municipal, criar as estruturas físicas e as equipes… Tudo isso é necessário ‘para ontem’, mas deve levar anos”, avalia. “A única chance de garantir o bem-estar para a pessoa que precisa do cuidado é olhar para o cuidador. Ao cuidar bem do cuidador, você, automaticamente, melhora o atendimento da pessoa que necessita dele”, conclui.
Miriam, que viveu a experiência do cuidado de pessoas idosas com demência duas vezes, sentiu na pele o descaso e enxerga uma distância considerável entre os textos e a realidade. “A Política Nacional de Cuidado, o Estatuto do Idoso, tudo isso é lindo”, diz ela. “Na vida real, entretanto, você vai ao posto de saúde e só consegue agendar uma consulta para daqui a seis meses, o remédio está em falta, a fralda geriátrica só chega dali a dez dias. Mas o problema está acontecendo agora. Como é que essas pessoas vão resolvê-lo hoje?”, questiona.
Dor que virou história – e acolhimento
Miriam precisou trilhar sua jornada sozinha, porque não havia outro jeito. Mais tarde, porém, transformou a sua dor em acolhimento a milhares de pessoas que enfrentam desafios parecidos com os dela. Em 2017, ela publicou o livro Alzheimer – Diário do esquecimento. Para divulgar a obra, criou uma página no Facebook, que deu origem a diversos grupos. Essas comunidades virtuais são lideradas por ela e, atualmente, reúnem mais de 100 mil membros.
Paralelamente, a antiga cuidadora também comanda grupos de Whatsapp, além de promover e participar de encontros presenciais. Por fim, Miriam criou ainda a plataforma “Cuida de mim – Alguém que eu amo tem Alzheimer”, com informações e cursos de apoio a cuidadores, e escreveu outros livros sobre o tema. Entre eles, um é dedicado aos cuidadores, com o título de Alzheimer: assombro e cura do cuidador. “A gente não se cura, mas, ao transformar a dor em história, é possível validá-la. A dor não passa, mas ajuda”, finaliza. Já que a doença destrói memórias, que as lembranças e dores fiquem registradas, como um suporte e um abraço para quem cuida.