Quais são os segredos de um campeão mundial de atletismo? No caso de Alison dos Santos, medalha de ouro nos 400 metros com barreiras em Eugene, nos Estados Unidos, na noite de terça-feira, a receita envolve uma adaptação do seu jeito de correr naturalmente às necessidades de uma prova que exige técnica e perfeição.


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Por causa da altura de 1,98m (1,12m só de pernas), muito acima da média dos corredores, o paulista de 22 anos é um dos poucos no mundo a percorrer o espaço entre as barreiras com 12 passadas enquanto os outros fazem 13. Isso garante energia para disparar na reta final, quando os outros já sentem o peso da disputa. A mudança no jeito de correr que começou a ser treinada no final do ano passado já traz grandes resultados.

Medalhista de bronze nos Jogos Olímpicos de Tóquio, no ano passado, Alison teve uma ascensão meteórica nos últimos quatro anos. Ele completava a prova em 49s78 em 2018 e conquistou o ouro com 46s29. E promete ir além.

O próximo passo é se aproximar do recorde mundial que pertence ao norueguês Karsten Warholm (45s94). “Eu já corri com o recordista mundial e a gente tem noção de que em algum momento baixar essa marca é possível. Os 46 (segundos) já foram um sonho para a gente e hoje não é mais”, disse Alison. Ele repete o feito de Fabiana Murer, brasileira campeã mundial no salto com vara em 2011.

“A pergunta não é nem se é possível, mas quando vamos chegar (ao recorde). As portas estão abertas. Se o Warholm corre 45, eu, o (Rai) Benjamim também podemos correr. Então a pergunta é quando”, disse o brasileiro, referindo-se aos seus principais concorrentes na prova.

A evolução do paulista de São Joaquim da Barra (a 460 km de São Paulo) é simbolizada por uma temporada perfeita, invicto em todas as disputas. Ele venceu quatro etapas da Diamond League e chegou ao Mundial com o melhor tempo da temporada. Em Oregon, Piu, como também é chamado, venceu a qualificação no sábado, com 49s41, e a semifinal de domingo, com 47s85. É o líder do ranking mundial. “É um momento inesquecível, uma situação maravilhosa de alcançar o topo do mundo”, afirmou o brasileiro, na pista americana.

O “pulo do gato” para essa evolução é o novo padrão de passadas. Desde o ano passado, Alison vem fazendo 12 passadas entre as barreiras no meio da prova. A maioria dos atletas costuma fazer 13. É uma corrida mais natural, alinhada às suas características físicas e a sua velocidade. Ele é um dos três atletas no mundo a adotar essa estratégia, facilitada pela sua estatura de quase dois metros.

O número de passadas numa prova é treinado exaustivamente, não há improviso. A equipe técnica trabalha cada passada. Mas ela varia de competidor para competidor, cada um define o seu ritmo de acordo com seu biotipo. Tudo é planejado da primeira aceleração na largada, o intervalo entre cada uma das dez barreiras até o último pique. Nos 400 metros, existem dez barreiras. São 45 metros até a primeira e 35 entre cada uma da sequência e 30 metros da última barreira até o final.

Com as 12 passadas em parte da prova, ele consegue ser rápido no início e deslanchar quando os competidores sentem o peso da prova. “Antes, eu tinha de ‘segurar’ um pouco minha corrida para fazer essa quantidade de passadas. Com essa mudança, corro bem mais solto, mais próximo do que acontece naturalmente, do jeito que eu correria se não tivesse barreiras”, disse o corredor ao Estadão, em janeiro, quando ensaiava as mudanças que estão dando certo.

“Esse é o grande segredo da corrida dele. Ele faz o primeiro espaço da prova de forma confortável, com as 13 passadas. Na segunda parte da prova, ele força o ritmo. A partir da 6ª barreira, ele consegue a frequência ideal para dar velocidade. A partir da 8ª, ele abre um caminhão de todos, que começam a cair de rendimento”, diz o professor Cleberson Lopes Yamada, especialista em atletismo e técnico dos 400m sobre barreiras nos Jogos do Rio-2016.

Outra explicação de sua evolução está no crescimento físico. Ele é um atleta mais forte. Em quatro anos, ele passou de 71 kg para 78 kg. O ganho foi só de massa muscular. O porcentual de gordura se mantém entre 3% e 6%.

AS BARREIRAS QUE ALISON SALTOU AO LONGO DA VIDA

O jeito descontraído e brincalhão de Alison dos Santos nas pistas representa a superação de um grande drama pessoal. Quando tinha dez meses e já andava se escorando pelos móveis da casa, ele sofreu um grave acidente doméstico. Bateu no cabo da frigideira que estava no fogão e virou sobre si o óleo quente no qual a avó fritava peixe. O líquido fervente caiu em sua cabeça, ombro e braços. Foram cinco meses de internação no Hospital do Câncer em Barretos (SP).

Ele se recuperou. Mas, durante muito tempo, usou boné para esconder as cicatrizes. Vergonha. De vez em quando, ainda usa o acessório. Nos treinos, o boné protege as cicatrizes da cabeça do sol intenso. A pele é mais sensível no local. Por outro lado, a cobertura na cabeça atrapalha pela resistência ao vento e pela limitação da visão.

O corredor contou ao Estadão que, em suas primeiras competições, em 2014, chegou a correr de touca para se esconder dos olhares. A partir das provas seguintes, começou a não se preocupar mais. Piu conta que o atletismo ajudou a se aceitar. O boné se tornou cada vez mais raro. Um campeão mundial não tem razão nenhuma para se esconder.