“A crise viajou”. A frase foi cunhada pelo então senador Fernando Henrique Cardoso, durante a Constituinte, na esteira de uma viagem do presidente Sarney ao exterior. No episódio envolvendo as transações financeiras de Flávio Bolsonaro seguido pelas revelações do elo de seu gabinete com milicianos do Rio aconteceu o inverso: o presidente viajou, a crise ficou. A piada em Brasília é que a maioria dos eleitores segue depositando esperanças no governo. Em 48 prestações de R$ 2 mil. A verve humorística do brasileiro é implacável e constitui forte indicativo de que a espada de Dâmocles passou a pender sobre a cabeça do “01” de Bolsonaro.

Para além das movimentações nada ortodoxas nas contas do primogênito do presidente da República, ainda carente de esclarecimentos plausíveis, o que foi revelado até agora sobre os laços do gabinete de Flávio Bolsonaro com as milícias cariocas nada tem de pilhéria. O potencial explosivo é tamanho que seus estilhaços, se não contidos, podem atingir em cheio o Palácio do Planalto. Talvez, por isso, Bolsonaro já tenha lançado o antídoto: “Se ele errou, e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que pagar”, asseverou o presidente. Não é preciso esgarçar muito o fio do novelo para enxergar a gravidade do problema. Descobriu-se nesta semana que a mãe e a mulher de Adriano da Nóbrega, miliciano foragido e apontado pela polícia como um dos chefes do “Escritório do Crime”, organização suspeita de envolvimento na execução de Marielle Franco, estavam lotadas no escritório do filho de Bolsonaro. Dados do COAF adicionaram ainda mais pimenta ao caldeirão da crise ao revelarem que Raimunda Veras Magalhães, mãe do miliciano, chegou a depositar R$ 4,6 mil na conta de Fabrício Queiroz — o mesmo assessor enrolado de Flávio Bolsonaro, cujas contas foram abastecidas com repasses sistemáticos de colegas de gabinete, e que foi responsável pela emissão de cheques no total de R$ 24 mil para a primeira-dama Michele Bolsonaro — montante este fruto, segundo o próprio presidente da República, de um acerto de parte de um empréstimo que o mesmo teria feito a Queiroz sem declarar à Receita.

Quer dizer, se restar comprovado que Fabrício Queiroz operava um esquema ilegal envolvendo milicianos e servidores da Alerj, Flávio Bolsonaro terá — no mínimo — de assumir o custo político de ter dado guarida a ele. E o mandatário do País será um destinatário confesso de dinheiro proveniente de um operador das milícias. A dúvida é: em que medida Flávio sabia das traficâncias e das relações nada republicanas do ex-assessor?

A barafunda em que se meteu o senador eleito poderia ter sido evitada caso o clã se mirasse no exemplo do ex-ministro da Justiça sueco Thomas Bodström. Quem conta é Claudia Wallin, autora do livro “Suécia, um país sem excelências e mordomias”. Em outubro de 2000, tão logo fora anunciado pelo primeiro-ministro Göran Persson para integrar o ministério recém-formado, Bodström, profundo conhecedor do ímpeto investigativo da imprensa local, resolveu se antecipar. Admitiu a jornalistas ter fumado haxixe quando jovem e contratado diaristas “por fora”, ou seja, sem pagar imposto. A notícia já se espalhava como rastilho de pólvora quando o telefone tocou. Era o primeiro-ministro: “Algo mais?”, questionou, deixando implícito o complemento “de desabonador” na pergunta. O ministro da Justiça entrou em parafuso. Dias antes, ele havia garantido ao superior uma ficha translúcida de tão limpa.

Começava aí o seu calvário particular. O coração do novo integrante do primeiro-escalão sueco parecia trotar descompassado. “A verdade é que eu não tinha mais certeza absoluta de nada”, confessou Thomas Bodström em sua biografia. “Todas as noites, eu acordava no meio da madrugada e fitava a janela escura do quarto, enquanto revirava a memória. Aquela briga feia na juventude seria um esqueleto no armário? Será que nos meus tempos de estudante o meu salário como jogador de futebol não era alto demais, para que ao mesmo tempo eu recebesse o subsídio estatal para estudar na universidade?”, conjecturou o ex-ministro. Até que, como num átimo de tempo, uma lembrança o fez saltar subitamente da cama.

Antes de seguir carreira como advogado, Bodström havia arriscado a vida nas quatro linhas. Penduradas as chuteiras, recebeu pequenas quantias pelo pagamento da aposentadoria, mas não tinha certeza se havia pago os impostos sobre o benefício. “É isso! A aposentadoria como jogador de futebol !”, disse em voz alta a si mesmo. E lá estava o ministro da Justiça da Suécia, às três horas da manhã de uma madrugada fria, de pijamas, a vasculhar gavetas e folhear documentos num esforço de Sísifo para encontrar recibos, um que fosse, capaz de livrá-lo daquele tormento. Para o seu desespero, a faina foi inútil. Acabou tendo que quitar as obrigações pretéritas com o Fisco — cerca de R$ 24 mil. Uma semana depois, o primeiro-ministro o convocou para saber se o assunto ainda estava pendente. “Desde aquele dia, o premier nunca mais tocou no assunto. Mas aquela pergunta “Algo mais?” até hoje me provoca calafrios”, admitiu.

Nas “Cartas a um jovem político”, FHC lembra que na vida política, ou você tem vocação para servir o público, ou é melhor nem tentar. Porque, sem ela, corre-se o risco de usar a política como escada para conseguir vantagens pessoais. Isso acontece em grande medida — e é o que causa o repúdio tão grande do povo aos políticos. Portanto, diante das tergiversações no esclarecimento das suspeitas sobre suas movimentações financeiras, e em meio ao enredo da proximidade de seu escritório parlamentar com milicianos do Rio, a pergunta formulada pelo primeiro-ministro sueco se ajusta com perfeição ao primeiro filho do presidente da República: algo mais, Flávio Bolsonaro?