Com uma política externa errática que não consegue projetar influência na região e pouco tem contribuído para a solução da crise na Venezuela, o governo Bolsonaro vê seu natural protagonismo no continente ameaçado com a possível reviravolta política nas próximas eleições presidenciais argentinas, em 27 de outubro. “A Argentina é mais importante do que a Venezuela, porque o governo pode voltar para as mãos de Cristina Kirchner”, afirmou Jair Bolsonaro em entrevista ao SBT.

Pesquisas recentes apontam chances reais de a ex-presidente voltar ao poder. Em abril, levantamento da consultoria Isonomía a colocou nove pontos percentuais à frente no segundo turno, com 45% de intenções, contra apenas 36% de Maurício Macri – no primeiro turno, ambos estariam em empate técnico, com cerca de 30% dos votos. O retorno de Kirchner representaria o surgimento de uma nova correlação de forças na América Latina. Atualmente, poucos países vizinhos – como Cuba, México e Bolívia – apoiam Maduro. Um governo de esquerda na terceira maior economia da região enfraqueceria a aliança internacional – majoritária localmente – que busca substituir Maduro e enterrar de vez as pretensões bolivarianas no continente. O risco é a volta do populismo de esquerda que levou a Venezuela ao colapso. Países que lideram o movimento pela normalização democrática venezuelana, como Chile, Colômbia e Peru, conseguiram manter crescimento econômico sólido nos últimos anos com políticas pró-mercado e responsabilidade fiscal. Além disso, o retorno do kirchnerismo significaria um contraponto ao papel de liderança que Bolsonaro gostaria de exercer na região, com o apoio de Donald Trump. É uma má notícia para as pretensões de um governo que, em quase cinco meses de mandato, ainda não conseguiu estabelecer uma política externa coerente, sólida e influente.

Presidente Mauricio Macri luta pela reeleição em cenário adverso, com uma grave crise econômica que se prolonga no país

Divulgação

A ascensão de Kirchner não é à toa. Ela se beneficia das dificuldades econômicas enfrentadas por Macri, que não conseguiu realizar reformas liberalizantes no mandato iniciado em dezembro de 2015 e ainda enfrentou uma crise cambial que o levou a assinar um plano econômico de forte redução de gastos públicos em troca da ajuda de US$ 57 bilhões do Fundo Monetário Internacional. A crise do país se prolonga. Segundo o Banco Mundial, depois de uma queda de 2,5% no Produto Interno Bruto em 2018, espera-se uma contração de 1,9% da economia em 2019. Só no ano passado, a depreciação do peso foi superior a 50,6%. Neste ano, a desvalorização já supera 13% e a volatilidade na moeda deve se manter. Uma das promessas de campanha de Macri era derrubar a inflação, mas ela persiste e deve chegar a 43,7% este ano. Ele quis evitar o desgaste de fazer reformas saneadoras no início do mandato, mas isso agravou a situação macroeconômica do país e debilitou sua situação política. Como atenuante, Macri conseguiu atenuar a rejeição dos investidores internacionais – uma herança da gestão de Cristina Kirchner -, mas não conseguiu trazer de volta recursos que impulsionassem a produção no país. Com desemprego persistente na faixa de 9%, o presidente buscou fugir do risco para sua reeleição congelando este ano tarifas públicas, uma medida que não deverá solucionar os problemas econômicos do país.

 

Guerra de pesquisas

Mesmo com o alto contingente de indecisos (20%), os números do levantamento divulgado em abril provocaram uma tempestade política e abriram uma crise no governo Macri. Na segunda semana de maio, a mesma empresa concluiu um novo levantamento, com números menos favoráveis a Kirchner. Mesmo assim, ela ainda seguia na dianteira – 41% a 37%. O voo solo de Kirchner, no entanto, não segue apenas em céu de brigadeiro. Ela, que pode oficializar a candidatura até o dia 22 de junho, enfrenta vários processos por corrupção e deverá enfrentar um julgamento no dia 21 de maio sob a acusação de desvio e lavagem de dinheiro por meio de hotéis que pertencem à sua família na Patagônia. Senadora, ela se beneficia de foro privilegiado e, numa eventual condenação, só poderia ser presa com autorização do Congresso. Sua situação é delicada.

Impedida de sair do país, ela teve que pedir autorização da Justiça para visitar a filha Florencia em Cuba, que está em tratamento médico e também está implicada na ação. Ou seja, há intempéries no horizonte da ex-presidente – para o deleite de Jair Bolsonaro.