O futebol brasileiro não é lá dos mais ricos em pesquisas e estudos estatísticos. Por essa razão, muitos dos debates giram em torno de percepções – algumas muito válidas. Nos últimos anos, uma das impressões é a de que parcela considerável dos profissionais dentro de campo abusa do consumo de álcool. Há diversos casos pelo mundo de jogadores que morreram ou sofreram graves acidentes por estarem dirigindo bêbados. Lamenta-se também que algumas promessas tenham sido tragadas pela escuridão das noitadas etílicas. Por fim, o ocaso lento de ex-jogadores como Mendonça entristece.

O outrora talentoso meia debilitou a saúde, erguendo copos até morrer, em julho de 2019, quando somava 63 anos. Comoveu sobretudo torcedores mais velhos do Botafogo, Santos e Palmeiras, que o alentaram nos anos 1970 e 1980. Infelizmente, desfechos similares a esse não são raros. Corinthians e Palmeiras, por exemplo, são exemplos de clubes que se preocupam com o tema e tentam regulamente apresentar aos jogadores profissionais e de base, sobretudo, em forma de palestra e discussão, o perigo do consumo de álcool na vida de uma atleta.

Joaquim Grava, médico do Corinthians de 1979 a 2003, hoje consultor do clube em ortopedia e traumatologia, tem a sensação de que o uso de álcool pelos jogadores brasileiros está se elevando. “O consumo sempre foi muito grande. Quem não se lembra do caso do Sócrates? Mas está aumentando, acredito. O que mais me assusta são aqueles jogadores mais destacados das categorias de base no momento em que assinam o primeiro contrato mais polpudo, ganhando seus R$ 50 mil por mês. Muitos deles, se não tiverem estrutura familiar boa, já se acomodam e vão para o álcool como se não houvesse amanhã. Na minha forma de ver, essa supervalorização de promessas é uma das causas que melhor explicam a decadência do futebol brasileiro, e tem mais peso do que os problemas de calendário”, por exemplo.

Marco Aurélio Cunha, que foi médico e dirigente do São Paulo e trabalhou em diversos outros clubes, diverge do colega em alguns aspectos. “O futebol é como qualquer outra profissão. O jogador em atividade pertence também aquela juventude universitária que se embebeda diariamente. Qual é a diferença? Nenhuma. São jovens que querem aproveitar a pouca idade e se deslumbram com a descoberta daquilo que podem fazer sem o domínio dos pais. Isso não é alcoolismo, é um momento dos meninos e das meninas. Porém, parte daqueles que têm pais alcoólatras ou alguma predisposição para o vício acaba descambando para o alcoolismo”.

O futebol está cheio de histórias de jogadores que se perderam no meio do caminho, ou reduziram esse caminho, por causa da bebida sem freio, sem consequências.

Marco Aurélio, hoje coordenador de futebol feminino da CBF, avalia que a impressão de que o consumo de álcool se elevou é consequência da infestação de publicações em mídias sociais, obra de torcedores que patrulham a noite, munidos de seus telefones celulares. “Temos hoje mais mecanismos fiscalizadores, vide o caso do Ralf. Fiquei com pena dele. Hoje as ruas estão cheias de testemunhas, que vão filmando a toda hora o que se passa”, diz o dirigente, referindo-se ao acidente em que um veículo que conduzia o então volante do Corinthians atropelou um idoso que se encontrava em um ponto de ônibus na Água Rasa, na zona leste de São Paulo. Segundo a defesa do atleta, um segurança é que estava ao volante.

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Se faltam estatísticas brasileiras, talvez um trabalho internacional possa servir como referência. Um estudo divulgado em 2015 pelo FIFPro, sindicato internacional dos profissionais do futebol, proporciona uma noção sobre a extensão do quadro. Em um universo de mais de 800 jogadores e ex-jogadores, retratou-se que 9% dos atletas em atividade e 25% dos que já pararam de jogar reconhecem que consomem bebida alcoólica em excesso. A entidade elaborou um guia que contém sintomas de transtornos e oferece sugestões de encaminhamento para quem busca apoio.

Presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo, Rinaldo Martorelli disse ao Estado que já conversou com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, o Dieese, para elaborar um perfil do jogador de futebol do Estado, que contemple dados como suas origens, hábitos e até vícios, como o alcoolismo. “Mesmo que a pesquisa saia, acho que os dados sobre alcoolismo serão sempre subnotificados, porque o jogador tem dificuldade para assumir a dependência”. Eles sempre acham que isso vai atrapalhá-los na carreira. Há casos ainda em que o atleta, como Sócrates, que não admitem precisar de ajuda. Ele morreu em dezembro de 2011, aos 57 anos.

Martorelli diz que o sindicato acolhe os atletas que buscam apoio. “Já passamos da fase de ir buscar aqueles que sofrem com esse problema. Hoje esperamos que venham até nós. Lembro que arrumei até internação numa clínica para o Jorge Mendonça (meia-atacante que brilhou sobretudo no Palmeiras e Guarani), mas ele fugiu no primeiro dia. Os que nos procuram estão mais dispostos a se engajar no nosso trabalho”, diz o sindicalista, que afirma oferecer cursos, convênios com psicólogos e até o trabalho de coaches. “Damos as condições, mas quem faz o esforço para sair dessa é o atleta”.

Jorge Mendonça morreu em 2006, aos 51 anos. Após ter colocado ninguém menos do que Zico no banco durante a Copa de 1978, foi derrotado pelo álcool. O futebol brasileiro conta sem preconceito os problemas do passado, mas ainda falta aos clubes admitirem os casos do presente, para poder ajudar quem precisa de forma mais transparente – servir de exemplo.


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