Para falar do álbum O Anel – Alaíde Costa canta José Miguel Wisnik, que o Selo Sesc acaba de lançar, é preciso voltar a 1968, ano de endurecimento da ditadura militar do Brasil. Mas também de efervescência musical, sobretudo nos festivais de música, que abriam espaço para que jovens compositores, muito deles universitários, pudessem ter alguma voz. Foi nesse ambiente, um ano antes, que o Tropicalismo eclodiu pelas mãos de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Entusiasmado com essa abertura, o paulista José Miguel Wisnik, que estudava Letras e piano clássico, então com 19 anos, foi atraído para inscrever uma canção de sua autoria na primeira edição do Festival Universitário da Canção Popular, uma iniciativa da TV Tupi. A música era Outra Viagem, que assinava sozinho. Ele teve que escolher o intérprete entre uma lista que a produção do festival lhe entregou assim que a música foi selecionada. Sem muita demora, apontou uma carioca – àquela altura já radicada em São Paulo – cujo o nome era associado à bossa nova e que fizera sucesso anos antes com Onde Está Você, canção de desamor composta por Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini.

Era Alaíde Costa. “Identifiquei-me logo. Achei que ela tinha a ver comigo e com a canção. Alaíde é do lirismo, das harmonias, da sintética. Ela, tempos antes, havia se apresentado no Theatro Municipal no qual, convidada pelo maestro Diogo Pacheco, interpretou canções medievais e renascentistas (o show Alaíde com Alaúde). E eu queria ser concertista, já havia me apresentado lá também. Havia todos esses cruzamentos entre nós”, conta Wisnik, ao justificar sua escolha. Na lista havia nomes como Elis Regina, Claudette Soares, Lucio Alves, Beth Carvalho, entre outros.

Em comparação a outras canções apresentadas em festivais daquele ano, Outra Viagem estava mais para Sabiá (Tom Jobim/Chico Buarque) do que para Divino Maravilhoso (Caetano Veloso/Gilberto Gil). Alcançou um honroso quinto lugar na final, o que desagrada a sua intérprete até hoje. “Eu achei muito injusto. A música é belíssima”, diz Alaíde. A canção – por mais incrível que isso possa parecer – nunca havia sido registrada em disco por Alaíde até o lançamento desse projeto que a une com Wisnik, nascido no ano passado e pensado, primeiramente, para ser um show.

E esse elo entre a cantora e o compositor, que resistiu a mais de cinco décadas, foi selado com um gesto quase maternal de Alaíde. Em uma comemoração após a final do festival, realizada em uma danceteria, ela tirou do dedo um anel que usava e deu de presente para Wisnik. “Tinha uma luz estroboscópica e, nesse ambiente, ela fez esse gesto inesperado que me soou como o estabelecimento de um vínculo”, diz ele.

Essa história – e tudo o que ela significou – está na inédita O Anel, que dá nome ao trabalho. “O anel que tu me destes, não guardei, nem me esqueci. Ele nunca se quebrou. Fui eu que me perdi”, dizem os primeiros versos. “Você não imagina a emoção que senti ao ouvi-la. A ficha caiu, né? Chorei feito uma doida”, conta Alaíde.

Outra música inédita do repertório, Aparecida, embora tenha sido composta na década de 1990, encaixou-se perfeitamente com a ligação de ambos e do clima do álbum ao falar de uma melodia que se acomodou em algum lugar do coração, com emoções guardadas sem posse. Em Por Um Fio, parceria de Wisnik com Paulo Neves feita neste ano, a cantora empresta sua voz para falar de fios que se tecem com a voz do outro, explicitando uma cumplicidade que também pode se estabelecer entre compositor e intérprete.

Entre as regravações, estão canções como Assum Branco, cantada por Gal Costa no disco Aquele Frevo Axé (1998). Laser, parceria de Wisnik e Ricardo Briem, e Ilusão Real, escrita com Guinga.

O álbum, que foi gravado entre os meses de setembro e outubro, tem produção musical de Alê Siqueira e direção do próprio Wisnik, que toca piano e participa como cantor de algumas faixas. Ao seu lado, estão os músicos Zeca Assumpção (contrabaixo) e Sérgio Reze (bateria), que formam a base musical do projeto, que conta também com participação de músicos como Jaques Morelenbaum (violoncelo), Swami Jr (violão) e Nailor Proveta (clarinete).

Escolhido o repertório após sugestões de ambos, a cantora pediu dois meses para estudar as músicas. “Ela só canta o que corresponde à sensibilidade dela. Músicas que não batiam, ela não se deixou levar”, conta Wisnik, sobre a conhecido apuro de Alaíde, conhecida por interpretações que trazem uma espécie de marca registrada: a emoção na voz.

“Eu não sei definir o que é (essa emoção). Eu analiso a poesia e tento passar o que o letrista quer dizer. Acho que é por aí. A coisa vem”, diz Alaíde. “Não é uma emoção sentimental, cheia de trejeitos. Alaíde não sentimentaliza as canções. Ela não procura indicar o sentimento. A emoção vem inteira na emissão dela. Ela só depurou ao longo dos anos”, explica Wisnik, dando como exemplo o registro de Onde Está Você que fecha o disco em um medley com a canção Olhai os Lírios do Campo. “Ela já a canta há mais de meio século. Poderia estar automatizada, mas não.”

Além do álbum O Anel, que será apresentado ao público em uma live neste sábado, dia 19, às 19h, direto do palco do Sesc Pinheiros para o público que acompanhará de casa pelo perfil do Instagram @sescaovivo ou pelo canal do Sesc no YouTube, Alaíde está envolvida em um projeto do produtor Marcus Preto, no qual gravará canções escritas pelo rapper Emicida especialmente para ela, com melodias feitas por Joyce, João Bosco, Ivan Lins, Guinga e Marcos Valle.

Aos 85 anos de idade e 65 de carreira, Alaíde diz não se imaginar sem a música. Muito tímida, ainda na pré-adolescência, ela era inscrita pelo irmão e vizinhas para cantar em programas de calouros. Ia “na marra”, como ela diz. Aos 14 anos, foi ser babá de três meninas cujos nomes ela ainda guarda na lembrança – Telma, Taís e Talita. Cantarolava o dia inteiro pela casa, o que chamou a atenção da patroa, a dona Vanda, que sugeriu que ela fosse ao programa de calouros do temido Ary Barroso.

Sem dinheiro para comprar uma vitrola, decorou ouvindo no rádio a canção Noturno em Tempo de Samba, de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy, na voz de Silvio Caldas. Quando aprendeu, foi ao concurso de Barroso e tirou cinco, a nota máxima. Tomou gosto pela profissão de cantora. Dona Vanda perdeu a babá. “Sempre escolhia músicas que já não eram da época. Eu tirava notas boas, mas implicavam com o meu repertório.” Já profissional, o universo da cantora incluiu nomes como Johnny Alf, Vinicius de Moraes – de quem ela é parceira em Amigo Amado -, Tom Jobim, Baden Powell, Ronaldo Bôscoli, Hermínio Bello de Carvalho, Sueli Costa e João Donato.

“Minha carreira foi difícil. Modéstia a parte, tenho bom gosto. Sempre escolhi para cantar músicas que não são populares. Aliás, elas podem ser populares se as pessoas tiverem boa vontade para ouvi-las e divulgá-las. Mas estou feliz. Não me arrependo de nada”, diz.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.