Filme sobre desaparecimento de Rubens Paiva e luta da sua mulher, Eunice Paiva, pela verdade é favorito ao Oscar. Mas, no Brasil, gera muita discussão.Ainda não assisti a Ainda Estou Aqui. Penso que devo esperar a poeira baixar um pouco antes de ir ao cinema. Mas é divertido acompanhar o oba-oba em volta do filme nas redes sociais. Tem de tudo, começando com a onda do inevitável ufanismo em torno da indicação do filme ao Oscar.
Há quem critique aquela turma que torce pelo filme só porque ele é brasileiro. E aqueles que não aceitam críticas ao longa por ser brasileiro e contar a história de uma família vitimizada pela ditadura. Quem critica mesmo assim é acusado de estar ao lado da ditadura.
Tem gente acusando a esquerda de hipocrisia por insultar a direita sempre que lambe as botas de Donald Trump. Mas a mesma esquerda lambe as botas de Hollywood. Temos ainda as fake news de que o filme recebeu dinheiro pela Lei Rouanet: dinheiro público para os comunistas!
É óbvio que a turma da direita ao redor de Jair Bolsonaro não gosta do filme. A família de Rubens Paiva, político morto pela ditadura, sempre foi alvo pessoal da ira do ex-presidente, que cresceu em Eldorado Paulista, cidade antigamente governada pela família Paiva. O pequeno Jair, vindo de uma família pobre, olhava para o casarão dos Paiva, com piscina e fazenda em volta.
Mais tarde, Bolsonaro acusaria a família de ter conspirado com a guerrilha durante a ditadura, escondendo grupos armados na sua fazenda. Na vida real, não há comprovação disso. Mas é o que Bolsonaro conta há anos.
Os Paiva representam, no mundo bolsonarista, a esquerda corrupta e traidora da pátria amada. Justamente um filme sobre aquela família ganhar fama mundial deve ser difícil para os traumas e o ego de Jair.
Copa do Mundo
Enquanto isso, no campo da esquerda, a festa se parece com uma Copa do Mundo. "Gol do Brasil!", gritou o jornalista e youtuber Eduardo Peninha Bueno ao comemorar a indicação de Fernanda Torres ao Oscar. Torres até já tinha vencido, no começo de janeiro, o Globo de Ouro, que, para manter as comparações futebolísticas, equivale à Copa das Confederações, aquele teste antes da verdadeira Copa.
Aliás, dizem que quem leva a Copa das Confederações nunca ganha a Copa depois. Será?
Bueno ainda chamou o Oscar de "festa brega" de uma "nação vazia", se referindo aos Estados Unidos. Mostra o velho antiamericanismo da esquerda e despreza as manifestações culturais americanas. Mas levar um prêmio naquele país dos imperialistas não faz mal, aparentemente. Parece-me um pouco esquizofrênico.
As redes sociais me ensinaram que nem tudo são rosas no campo da esquerda. Há uma corrente mais "raiz" que ainda se lembra de uma suposta proximidade de Torres e sua mãe, Fernanda Montenegro, com o PSDB. Garante que as duas atrizes têm um passado antipetista e não se posicionaram de forma clara contra o impeachment de Dilma Rousseff. Tem até gente lembrando comentários de Torres sobre feminismo que não agradaram em nada.
Mas a crítica mais forte é de que mãe e filha são crias da "GloboLixo", quer dizer: da TV Globo, que não só apoiou o impeachment de Dilma e a caça a Lula, como também a ditadura. O filme seria, nessa argumentação, um "whitewashing" da turma global dos próprios erros do passado.
Ainda mais: atacam o diretor Walter Salles por ser herdeiro dos bilhões do Banco Itaú Unibanco: ricaço da direita fazendo filme para o pequeno burguês!
No fundo, não há consenso na sociedade brasileira sobre suas bases históricas. O golpe de 1964 realmente foi golpe? E o golpe contra Dilma? Quem são os homens do bem e os homens do mal? E quem tem o direito de reclamar o Brasil para si mesmo? O Brasil precisa urgentemente se deitar no divã.
Reparação histórica
Gostei muito de um texto na revista New Yorker, que fica longe das trincheiras que se formaram aqui no Brasil, e que foca no que realmente importa: o filme. O texto lembra do gesto de Walter Salles de dar a Montenegro um pequeno papel em Ainda Estou Aqui. Antes da filha, era ela a única brasileira a receber uma indicação ao Oscar por Central do Brasil (1998), também dirigido por Salles. Perdeu para Gwyneth Paltrow em Shakespeare Apaixonado.
Um Oscar para Torres seria como uma reparação histórica para sua mãe, conclui o texto na New Yorker. Pelo menos uma, já que a reparação histórica para Eunice Paiva ainda está por vir.
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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
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