Criadas para regular e controlar produtos e serviços de interesse público dos brasileiros, como energia elétrica, telecomunicações, saúde, transportes terrestres e aviação, as agências reguladoras federais estão diante de uma ameaça de enfraquecimento e de riscos para a sua independência. As autarquias, que hoje têm autonomia para realizar seu trabalho de fiscalização, passariam a ser vinculadas a conselhos temáticos dos quais participariam, entre outros, representantes do governo e das empresas fiscalizadas. Critérios ideológicos e interesses comerciais, portanto, seriam levados em consideração em decisões que, para o bem da população, deveriam ser tomadas apenas com base em critérios técnicos e científicos.

A proposta é do deputado Leandro Forte (União Brasil-CE) por meio de um “jabuti” incluído por ele em uma Medida Provisória (MP) do governo Lula que reorganiza a estrutura dos ministérios. O termo “jabuti” designa emendas parlamentares que não têm relação direta com o texto principal do projeto em apreciação, mas que são introduzidas durante sua tramitação. O deputado nega que tenha a intenção de retirar o poder regulador das agências, embora o texto da proposta apresentada por ele deixe nítida a possibilidade de influência política nas atividades das autarquias.

“Diminuir o poder das agências reguladoras pode ser desastroso”, alerta o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a agência reguladora conhecida dos brasileiros por causa do papel central durante a pandemia da Covid. “Se a Anvisa não fosse independente na época da pandemia, e tivesse se dobrado à vontade do Bolsonaro, poderíamos ter ficado sem as vacinas contra o Coronavirus”, exemplifica. Ele lembra que o ex-presidente tentou interferir na aprovação dos testes da Coronavac, vacina produzida pelo Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, porque na época o estado era governado por João Doria, seu inimigo político. “Para Bolsonaro, era a ‘vacina do Doria’, e não a vacina do Butantan, que poderia salvar a vida de milhões de brasileiros. Se ele tivesse impedido a aprovação dos testes, o resultado poderia ter sido catastrófico”.

Jabuti pode diminuir a independência e autonomia das agências reguladoras do estado
AUTONOMIA Em nome da segurança, a fiscalização de atividades como a aviação civil não pode estar submetida a ingerência política; Anac responde pela fiscalização do setor (Crédito:NELSON ALMEIDA)

Vecina explica que todas as agências reguladoras estão envolvidas com atividades que, em última análise, têm relação com o bem-estar social. “Elas precisam, portanto, manter a autonomia e a independência, para que suas decisões se dêem com base em critérios técnicos, e não em achismos do governo de plantão ou em interesses comerciais”. Ele cita também a recente atuação da Anvisa na proibição de pomadas modeladoras de cabelo cujos efeitos adversos incluem queimaduras e cegueira temporária: “se não houvesse na Anvisa um conjunto de técnicos ‘livres’ e preocupados com a saúde pública, neste momento poderia surtir efeito uma eventual pressão pela liberação de um produto que pode levar as pessoas à cegueira”, diz. “Por isso, os técnicos de qualquer uma dessas agências reguladoras precisam ter a garantia de que vão poder atuar com autonomia e independência”. Ainda de acordo com ele, a experiência do funcionamento dessas autarquias tem sido positiva, “apesar da indicação política para o comando das agências” – o que, em sua avaliação, deveria ser repensado. Ainda no caso específico da Anvisa, Vecina defende que “hoje o corpo técnico é o que garante o bom funcionamento”. “São servidores qualificados, concursados, sem medo de demissão ou afastamento”, explica.

“Quando comparamos as agências reguladoras entre si, vemos diferentes níveis na qualidade dos seus processos”, avalia Igor Britto, diretor de relações institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “Mas o mais importante é que precisamos defender que elas sejam tecnicamente independentes”, diz. “Mesmo diante das leis atuais, vemos situações de escolhas políticas, e não técnicas, dos dirigentes dessas autarquias, além de processos regulatórios com baixo nível de participação social e com forte interferência das grandes empresas nas decisões finais”.

Jabuti pode diminuir a independência e autonomia das agências reguladoras do estado
“As decisões das agências precisam se dar com base em critérios técnicos, e não em achismos do governo de plantão ou em interesses comerciais” Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa (Crédito: Bruno Santos)

Ainda de acordo com o representante do Idec, “ao invés de corrigir o problema da falta de participação efetiva de consumidores nas decisões das agências e de captura de seus dirigentes”, a eventual aprovação da proposta de Leandro Forte pode piorar ainda mais a situação. “Estamos sempre dispostos, porém, a contribuir com medidas concretas do Congresso contra imoralidades em diretorias das agências e pelo fortalecimento da participação da sociedade civil e dos consumidores em suas decisões”, diz. Se for para fazer qualquer alteração no funcionamento das agências reguladoras, portanto, que seja com vistas ao bem-estar social.