Rival da Seleção Brasileira nas oitavas de final da Copa do Mundo, a Coreia do Sul é um reflexo de uma página dolorosa da história mundial. Ocorrida no século XX, a Guerra da Coreia dividiu o território coreano e iniciou uma tensão que permanece na região até os dias atuais.

PARALELO 38: O MAPA DA COREIA COMEÇA A MUDAR

Guerra das Coreias

Após a Segunda Guerra, Coreia foi ‘dividida’ (U.S. Army Korea/public domain)

A Segunda Guerra Mundial começou a mudar os traços do mapa coreano. Em agosto de 1945, a Coreia deixou de ser controlada pelo Japão. Professor de História da PUC-Rio, Mauricio Parada detalhou o que ocorreu no pós-Guerra.

– Com a rendição do Japão na guerra, houve um acordo entre as potências que saíram vencedoras da Segunda Guerra. A divisão da Coreia por meio do Paralelo 38 decorreu, inclusive, de acordos anteriores à guerra acabar na região. Não há registro da participação ativa dos coreanos nestas decisões – afirmou ao LANCE!.

Professor de História da Uerj e da UFF, Marcus Dezemone contou como a Coreia começou a se fragmentar. Em 1945, a Conferência de Potsdam bateu o martelo:

– A península da Coreia tinha sido invadida durante a Segunda Guerra. A União Soviética invadiu o Norte, mas interrompeu o avanço com a rendição japonesa. No pós-Guerra, houve a divisão entre o Norte, socialista e o Sul, capitalista – disse.

Após a divisão, em 1948 surgiram os primeiros governantes locais. Syngman Rhee nacionalista iniciou seu mandato como presidente sul-coreano. Já Kim Il-sung começou seu período como líder no território norte-coreano.

GUERRA DA COREIA: FOGO ABERTO E PAÍSES SEPARADOS

Guerra das Coreias

Russos e americanos ajudam povos locais na Guerra da Coreia (USAG/Humphreys/commons wikimedia

O Paralelo 38 é uma linha imaginária a 38 graus do Norte da Linha do Equador. Em 1950, a República da Coreia (Coreia do Sul) e a República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte) entraram em conflito bélico no ano de 1950. A divisão e os seus desdobramentos seria um dos marcos da Guerra Fria entre americanos e soviéticos.

Historiador da PUC-Rio, Mauricio Parada elencou alguns fatores que fizeram eclodir a Guerra da Coreia.

– Uma questão muito importante é a fronteira. O Paralelo 38 foi uma decisão arbitrária feita pelas potências que ganharam a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, os americanos e soviéticos. O acordo envolveu muito pouco a sociedade coreana, as pessoas que estavam ali, a política da peninsula. A rendição japonesa abriu um vácuo de poder. Este vácuo foi ocupado por uma fronteira artificial que não satisfez que as condições postas ali na realidade coreana – e ressaltou:

– Esta divisão, de certo modo, não satisfez as condições que estavam ali postas na realidade coreana e se tornou um espaço de colonialismo Por mais que haja incapacidade desse tipo de ação gerar paz, havia toda uma dinâmica geopolítica. Também houve resistência norte-coreana contra os japoneses e sua ligação com os soviéticos e chineses – complementou.

A guerra teve início em junho de 1950 e o cruzamento do Paralelo 38 desencadeou uma sucessão de fatores.

– Em 1950, o governo da Coreia do Norte invadiu a Coreia do Sul com o objetivo de tentar unificar o país sob o comunismo. Diante dessa crise internacional, o Conselho de Segurança da ONU foi acionado. Moscou foi acusada de estar por trás da invasão, o que levou ao embaixador soviético a se retirar do Conselho de Segurança. Sem o representante soviético, o Conselho aprovou a proposta de enviar tropas da ONU, formada pelas forças dos Estados Unidos para socorrer a Coreia do Sul – afirmou o historiador Marcus Dezemone.

Houve ainda reviravoltas e intervenções de outros países nos anos da Guerra da Coreia.

– O Norte estava quase vencendo, mas foi contido quando as tropas norte-americanas chegaram e evitaram o avanço sul-coreano. A União Soviética estava de mãos atadas e não poderia intervir na guerra. O risco era de esvaziar a ONU, que ela própria tinha ajudado a construir – disse Dezemone, apontando:

– Neste momento, a China socorreu a Coreia do Norte. Os chineses tinham se tornado comunistas em 1949 e, na época, não faziam parte da ONU. Com isto, os sul-coreanos mantiveram um regime capitalista, com o apoio da ONU para que forças militares e tropas dos Estados Unidos prosseguissem com bombardeios. Já os norte-coreanos eram comunistas e tinham apoio chinês – detalhou.

Uma trégua foi estabelecida após três anos. No entanto, ainda há algumas controvérsias em torno da região.

– Em 1953, houve o armistício que definiu a fronteira do Norte e do Sul na altura do paralelo 38. Tecnicamente, a guerra ainda não acabou, porque não foi celebrado tratado de paz. Por isso, essa é uma das fronteiras mais tensas do planeta até hoje – definiu Marcus Dezemone.

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A PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NA GUERRA DA COREIA

Getúlio Vargas

Getúlio Vargas não ordenou soldados a irem para a guerra (Reprodução / Twitter

A Guerra da Coreia ecoou de maneira curiosa em território brasileiro. O General Eurico Gaspar Dutra se comprometeu a enviar tropas brasileiras para apoiar os americanos na Guerra da Coreia. A decisão gerou reações, entre elas da militante Elisa Branco.

Durante as festividades de 7 de setembro no Vale do Anhangambaú, a costureira abriu uma faixa com a frase “Os soldados, nossos filhos, não irão para a Coreia”. Foi presa, condenada inicialmente a cinco anos de detenção. Porém, em meio ao apoio popular, foi solta após um ano e oito meses e, anos mais tarde. A militante ganhou o Prêmio Stalin da Paz (o contraponto soviético ao Prêmio Nobel da Paz).

Após seu retorno ao poder, Getúlio Vargas tomou uma nova atitude em relação ao envio das tropas.

– O governo Vargas estava começando. Sua eleição tinha sido há pouco tempo e havia uma situação política interna muito sensível para que o Brasil entrasse em um cenário de conflito – disse o professor Maurício Parada.

Aos seus olhos, os ecos da Segunda Guerra afetaram no cálculo de envio de soldados.

– Mesmo que o Exército Brasileiro tenha saído da Segunda Guerra Mundial com honras da Itália, ele não estava preparado para entrar em um novo conflito dessa dimensão. Na Guerra da Coreia morreram por volta de 2,5 milhões de pessoas. A guerra também acontecia em um lugar distante – afirmou.

O professor da PUC-Rio recordou-se que, de alguma forma, houve apoio.

– Aconteceu um apoio diplomático, um envio de suprimentos. Mas o envio de tropas, realmente, seria muito difícil. Era um conflito muito distante e não havia conjuntura política nem uma possibilidade da sociedade brasileira aceitar – constatou Parada.

A GUERRA AOS OLHOS DE UM ARTISTA

Renato Teixeira (Foto: Divulgação)

Renato Teixeira: lembranças de infância incluem a ‘guerra fratricida’ (Foto: Divulgação)

Por mais que as bombas e tiros estivessem em território asiático, a Guerra da Coreia marcou a vida de um dos grandes nomes da música brasileira. Autor de “Romaria”, “Tocando Em Frente”, “Amizade Sincera”, “Amora”, “Frete” e “Sentimental Eu Fico”, ele dedicou uma faixa de seu repertório aos ecos daquele período.

Ao L!, Renato contou como veio a ideia de escrever “Antes da Guerra da Coreia”.

– Nesse momento de 1950 a 1953 eu tinha entre 5 e 8 anos. Então as lembranças são do cheiro da casa, do leite chegando na porta, das brincadeiras no quintal…. A partir daí, vem o fim da inocência. Acho que a Guerra da Coreia foi um marco para a minha geração. Eu tinha nascido no ano do fim da Segunda Guerra e, logo depois, comecei a tomar consciência de que surgiu uma outra guerra. Uma guerra civil que quem estava disputando eram os russos contra os americanos – e ressaltou:

– Vem o contexto da Guerra Fria, do surgimento da cultura beat. E os amigos do meu pai não eram pessoas quadradas. eram mais humanistas. Aí quando fiz a música, quis citar a guerra como esse divisor de águas. Do fim da inocência e do surgimento de um mundo diferente. O mundo com o começo da cultura beat, que acaba desaguando na cultura hippie quando já sou mais jovem. A Guerra da Coreia tem uma simbologia de mudança de tempo, acho bastante significativo isso – completou.

O cantor e compositor contou as memórias que tem daquele período.

– Como era criança, eu sentia mais a parte dos comentários. A comunicação era bem mais lenta, por meio do rádio, das notícias e do interesse do meu pai em saber como é que a coisa andava… Das discussões, das conversas. Era uma guerra difícil também, como todas. Mas acho que, a partir dali, o mundo tomou outro rumo, sabe? – e destacou:

– Quando fiz essa canção, lógico, eu já era adulto, já morava em São Paulo, tinha vivido e continuo achando que essa guerra foi uma divisão de águas. Uma guerra fratricida, guerra entre irmãos. Uma parte defendendo os interesses dos Estados Unidos e municiado pelos americanos, outra parte municiada pelos russos. Enfim, essa coisa meio estranha da humanidade de guerrear na casa dos outros, né? Acho que a Coreia foi um pouco vítima da história. Mas foi muito de ouvir falar – completou.

Renato Teixeira também abordou a lembrança da canção que fez parte do LP “Amora”, de 1979. Além da faixa-título, este disco traz músicas como “Cavalo Bravo” e “A Primeira Vez Que Fui ao Rio”.

– Minha música “Antes da Guerra da Coreia” não foi citada, não foi comentada, pelo menos que eu saiba. Estou até gostando dela voltar à baila por causa do jogo (entre Brasil e Coreia do Sul, pela Copa do Mundo do Qatar, nesta segunda-feira, às 16h de Brasília). A parte cultural se entrelaça. Às vezes uma coisa puxa a outra. É bom as pessoas saberem que os compositores e os músicos brasileiros, historicamente, estão atentos a tudo. Tudo que acontece é registrado, tudo cai no radar – e frisou:

– De repente, eu fiz uma canção de um momento que poucas pessoas comentam, numa visão brasileira do que estava acontecendo lá. É bom que se revisite essa canção, pois acho que ela é muito bem feita, bem construída, fala de momentos fantásticos da vida das pessoas… finalizou.

Veja abaixo a letra da canção:

ANTES DA GUERRA DA COREIA – de Renato Teixeira

Quando a manhã se abria
Já era sol e cia
E a cara clara do dia
Se ria na grama
Que dança e espalha aquilo que brilha

Que todo menino tem nos olhos
Mas só os meninos que nasceram
Antes da guerra da Coreia

A mãe se dava e cuidava
Com graça as coisas do dia
Um cobertor na janela
O cheiro de maçã do meu pijama
E tudo que brilha naquilo

Que todo menino tem nos olhos
Mas só os meninos que nasceram
Antes da guerra da Coreia

O leite puro na porta
Um boi babando, uma arara
Uma varanda encerada
O branco da roupa quarada
E tudo que é simples na vida

Que todo menino tem nos olhos
Mas só os meninos que nasceram
Antes da guerra da Coreia…

‘COREIAS’ NOS DIAS ATUAIS

Coreias unidas - Jogos de Inverno

Países se uniram simbolicamente nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018 (LOIC VENANCE / AFP

Enquanto ainda há resquícios do clima de tensão entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, cada país segue um caminho diferente.

Professor de História da Uerj e da UFF, Marcus Dezemone contou como está cada região da Coreia.

– No século XXI, diante das intervenções dos Estados Unidos contra países como o Afeganistão e o Iraque, o regime norte-coreano investiu e se tornou também uma potência nuclear, numa estratégia para manter sua soberania. Já a Coreia do Sul se abriu ao ocidente e adotou um modelo capitalista. Investiu pesado em educação e alcançou maior bem estar para sua população, embora a desigualdade social seja cada vez mais criticada – afirmou.

A divisão das Coreias trouxe marcas na relação entre os países.

– Essa é uma questão controversa. São todos coreanos, de uma mesma etnia, com tradições e culturas compartilharas, e casos de família separadas pela divisão política – disse Marcus Dezemone, ressaltando:

– A relação oscila entre momento de maior proximidade e outros de afastamento – completou.

Aos olhos do historiador, há breves momentos de aproximação.

– Recentemente as duas Coreias desfilaram juntas nos Jogos de Inverno de 2018. Esse foi um momento de aproximação, ao meu ver, melhor que o atual – afirmou.

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O FUTEBOL E OS COREANOS

Coreia do Sul 2 x 1 Itália - Copa do Mundo de 2002

Coreia do Sul, a semifinalista da Copa de 2002 (GERARD JULIEN / AFP

Apesar de não ser o principal esporte, o futebol na Coreia do Sul é um dos mais populares. Quando foi país-sede do Mundial de 2002 ao lado do Japão, diversas cidades sul-coreanas pararam e as ruas ficaram tomadas de torcedores.

Quando a seleção sul-coreana foi às semifinais daquele torneio, o presidente da Federação Norte-Coreana na época, publicou uma mensagem parabenizando os vizinhos do sul, dizendo que foi uma grande demonstração de vantagens e tenacidade da nação coreana para o mundo.

O britânico Glyn Ford, especialista em Ásia Oriental observou que se a Coreia do Norte não jogar os Mundiais, os norte-coreanos torcem para a seleção do sul porque representa a Coreia, a não ser que jogue contra a do Norte.

AS COREIAS EM CAMPO

As duas repúblicas da península coreana disputaram entre si 17 partidas desde a primeira vez que se enfrentaram, em 1978. No histórico do duelo, a Coreia do Sul tem um amplo domínio. Ao todo, a seleção sul-coreana tem nove vitórias, contra apenas uma única dos norte-coreanos em um amistoso em 1990, quando venceram por 2 a 1. Os demais sete jogos terminaram empatados.

A Coreia do Sul vai a campo nesta segunda-feira (5), às 16h (de Brasília), para encarar a Seleção Brasileira. O sonho de ser a sensação da Copa do Mundo move os sul-coreanos.