Ao pensar nesta primeira coluna de 2023, ainda sob impacto da euforia (pela partida) e irritação (pela covardia) por assistir o avião presidencial decolar, com toda a comitiva milionária que terei de pagar outra vez, para mais um passeio inútil do verdugo do Planalto, sabe-se lá por que – Freud explica! –, me veio à cabeça a música “Apesar de Você”, de Chico Buarque. Segue a letra:

“Amanhã vai ser outro dia. Amanhã vai ser outro dia. Amanhã vai ser outro dia…

Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão. A minha gente, hoje, anda falando de lado e olhando pro chão. Você que inventou esse estado, inventou de inventar toda a escuridão. Você que inventou o pecado, esqueceu-se de inventar o perdão. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você, onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Água nova brotando e a gente se amando sem parar?

Quando chegar o momento, esse meu sofrimento, eu vou cobrar com juros, juro, todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro. Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar. Você vai pagar e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar.

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Ainda pago pra ver, o jardim florescer, qual você não queria. Você vai se amargar, vendo o dia raiar sem lhe pedir licença, e eu vou morrer de rir, que esse dia há de vir, antes do que você pensa.

Quando vi o avião presidencial decolar pensei: mais uma vez terei de pagar por um passeio inútil do verdugo do Planalto

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia. Como vai se explicar vendo o céu clarear, de repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente? Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Você vai se dar mal, etecetera e tal, lá lá lá lá laiá.” (Fim) Eu nasci e cresci em Brasília durante o período da ditadura militar. Como criança, nunca percebi qualquer anormalidade. Já adulto, cheguei a duvidar de que anos tão incríveis se dessem em tempos tão sombrios. Ao ver o fantasma do golpe se mandar do Brasil, chorão e fujão como um covarde assustado, sinto certa tristeza, ainda que aliviado, por saber que estivemos tão perto de algo assim novamente. Eu poderia escrever sobre o que me representou esses anos de Bolsonaro. Poderia lamentar as amizades perdidas, as inimizades criadas, os negócios desfeitos, os queridos doentes – e mortos –, as noites mal dormidas, enfim. Eu poderia muito, mas nada superaria essa canção. Obrigado, Chico!