Edson Arantes do Nascimento Pelé – 23/10/1940 – 29/12/2022

De todas as inúmeras coisas que Pelé fez ao longo da vida, os mais de mil gols que marcou e a série de recordes que estabeleceu, fora os imensuráveis momentos de admiração fora de campo, o seu feito mais especial talvez tenha sido a sua habilidade de participar ativamente da vida privada de tantas pessoas. Ao morrer no dia 29 de dezembro, aos 82 anos, em conseqüência de um câncer, Edson Arantes do Nascimento ainda viverá por muito tempo na memória de todos aqueles que o viram pessoalmente. Seja em campo, em eventos esportivos onde atuou como “embaixador” usando terno e gravata ou ainda como um morador da cidade de Santos, onde era conhecido pela simpatia e simplicidade. Durante as 24 horas em que seu corpo permaneceu no gramado da Vila Belmiro, mais de 230 mil pessoas passaram para dar um último adeus ao homem que recebeu a homenagem como o Atleta do Século.

Assim que os portões foram abertos às 10 horas do dia 2, uma fila de espera de até três horas para entrar no estádio se formou, mas, tirando uma confusão aqui e ali, a demora para ver Pelé foi apenas um detalhe. Muitos aproveitaram a madrugada e as primeiras horas da manhã seguinte, quando a fila diminuiu, para fazer o percurso ao lado do caixão mais de uma vez. “Eu fui sete vezes”, disse com orgulho um torcedor com a camisa do Corinthians.

ÚLTIMO PASSEIO Cortejo emocionante: caminhão do Corpo de Bombeiros com caixão de Pelé deixa a Vila Belmiro na terça (3), indo para o cemitério (Crédito:NELSON ALMEIDA)
ÍDOLO DE VÁRIAS GERAÇÕES
Maria Aparecida Nascimento e o
neto Matheus: nascida em Campinas
e torcedora da Ponte, a aposentada virou fã de Pelé por influência do pai (Crédito:GABRIEL REIS)

Além da família de Pelé, na área restrita a convidados, passaram os presidentes da Fifa, Gianni Infantino, e o da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Nas centenas de milhares de pessoas que se reuniam em volta da Vila Belmiro, chamava a atenção a profusão de camisas de futebol. Apesar dos inúmeros uniformes do Santos e da seleção brasileira, muitos deles autografados pelo ídolo, os principais representantes dos times do País e do mundo também marcaram presença. Havia ainda os descamisados que ostentavam na pele o amor pelo futebol e por Pelé, com escudo do time do Rei tatuado na testa, no braço, nas costas e na barriga. Vendedores ambulantes oferecendo bandeiras, jornais, faixas, camisetas, adesivos e chaveiros também mudaram o cenário da Baixada Santista, nesta época lotada por turistas.

A aposentada Maria Aparecida Nascimento, de 68 anos, diz que Pelé é seu “xará”, já que ambos têm o mesmo sobrenome, e se emociona ao se lembrar do ídolo através da memória do pai. “Ele falava muito dele, tinha quadros pela casa, tudo era Pelé”, conta. Natural de Campinas, Cida torce pela Ponte Preta, mas mora em Santos há 34 anos e trouxe o neto – o santista Matheus, de oito anos – para se despedir do jogador. Apaixonado por futebol, o menino vai sempre ao estádio com uma das tias e diz que apesar de Pelé ser “distante”, acompanhou os gols do craque pelo YouTube. Seu jogador favorito? Neymar. Seu sonho? “Quero ser jogador de futebol e jogar pelo Santos”.

Neymar, aliás, foi assunto. Seu pai, Neymar Santos, deu a entender para a imprensa que o filho não havia sido liberado pelo Paris Saint-Germain para vir ao Brasil. O jogador, entretanto, postou fotos em uma festa enquanto a despedida acontecia, e o clube francês desmentiu ter proibido a viagem do atleta.

TESTEMUNHA OCULAR Gerôncio, 84, viu todos os jogos de Pelé em Santos (Crédito:GABRIEL REIS)

Além do atacante, nenhum nome marcante do tetra ou do pentacampeonato mundial da seleção brasileira foi à Vila Belmiro. Astros como Cafu, Ronaldo, Romário, Kaká, Ronaldinho Gaúcho ou Roberto Carlos não se deslocaram até a Baixada. A indignação com essas ausências, contudo, aconteceu principalmente pelas redes sociais e pela televisão. Nas ruas de Santos, nem foram lembrados. Somente as histórias de Pelé tinham espaço: seus feitos em campo e fora dele.

Enrolado em uma bandeira do Santos e sentado em uma mureta ao lado do estádio estava o aposentado Gerôncio Amâncio da Silva, de 84 anos, que observava maravilhado o público ao seu redor. “Eu sou baiano, mas cheguei em Santos em 1956 e estou aqui até hoje. Vi o Pelé jogar com 17 anos”, diz. Ele conta que nunca acompanhou o Santos fora do País, mas que todas as vezes que o time com Pelé jogou na cidade ele esteve presente, já que mora próximo da Vila. “Vi tudo, o começo e a despedida em 1974, foi uma honra.”

O treinador de futebol colombiano Hernán Acosta, de 40 anos, veio de Medellín com a esposa Cindy Roja, de 36 anos, apenas para dar um último adeus a Pelé. Repleto de tatuagens do rei – seu rosto, seu troféu, o ano de suas Copas – ele conta que o amor pelo futebol e pelo jogador é uma questão familiar. “Eu amo o Brasil, mas não consigo explicar o Pelé. É de família”, diz com lágrimas nos olhos sem conseguir ir além. Ele chegou ao final do velório e foi um dos últimos admitidos no estádio. “Chegamos no aeroporto de Guarulhos, pegamos um táxi para cá e vamos embora amanhã”, explica Cindy, empolgada com a paixão do marido. Apesar do cansaço, percorreram todo o cortejo ao lado da bateria da Torcida Jovem. Ficaram chateados apenas quando perguntavam se eram argentinos, por causa do idioma. “Somos Brasil, cinco vezes campeão do mundo”, disse Hernan a um torcedor que o chamou de Messi.

A saga para chegar até Pelé não parecia ser empecilho para ninguém, seja quem ficou parado horas no trânsito vindo da capital paulista ou mesmo para uma família de cinco pessoas que se deslocou de ônibus de Campo Largo, no interior do Paraná, até Santos, para se despedir de Pelé. Louise Elaine Vieira veio com o marido, o filho Matheus, de dois anos e dois primos, e ainda encontrou uma parente que já estava na cidade. “Meu irmão mais velho, que já faleceu, era santista, então eu peguei a paixão pelo Santos por causa dele. Era meu sonho conhecer a Vila”, diz Esmael Chiquito, de 39 anos, ao lado da esposa. “Triste pelo Pelé, mas feliz de pisar na grama. Foi arrepiante.”.

Já o caminho de 13 quilômetros da Vila Belmiro ao local do sepultamento foi percorrido em quase quatro horas (a previsão era que durasse 40 minutos) e foi acompanhado também por moradores que puderam prestar suas últimas homenagens ao Rei. Seja saindo na sacada do prédio, vindo da praia em trajes de banho ou até mesmo com o uniforme do trabalho, na pausa do almoço. Por volta do meio-dia, o cortejo chegou ao Canal 6, onde mora a mãe de Pelé, dona Celeste, de 100 anos. Ali, o caminhão de bombeiros fez uma breve parada: aplausos e orações definiram o momento solene.

No chão do asfalto que seguia o cortejo, era possível ver todas as classes sociais. No calor de mais de 30 graus, alguns faziam o percurso descalços e sem camisa, cantando os gritos da torcida com toda a força. Carregando bandeiras enormes, os membros da Torcida Jovem do Santos se revezavam nos estandartes, todos sincronizados, caminhando em uma verdadeira procissão religiosa.

Fogos de artifício e até algum samba estavam sempre acompanhados de um semblante sério, de respeito pela majestade, e pela cantoria que dava ritmo à caminhada de todos. Na rua que dava acesso ao cemitério, os torcedores deram o último aplauso. À pedido da família, o enterro seria restrito e assim foi. Muitos esperaram na grade erguida pela Polícia Militar, mas entenderam que pelo menos aquela jornada terminava ali. O futuro mausoléu do Rei do Futebol irá remeter a um campo de futebol e terá várias lembranças do Atleta do Século. Ainda não há previsão de quando será aberto ao público, mas a depender do entusiasmo dos súditos, a espera já começou.