11/08/2022 - 7:40
Lida nesta quinta, "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito!" reuniu nomes de peso da política e economia. Para analistas, manifesto pode dissuadir de estratégia golpista.A sociedade brasileira – sobretudo, as elites políticas e econômicas do país – emitem um recado contundente com os atos democráticos realizados nesta quinta-feira (11/08) a partir da leitura da Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito!, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), afirmam analistas e cientistas políticos ouvidos pela DW Brasil. O evento no Largo de São Francisco, replicado em várias universidades do país, em diferentes regiões, é interpretado como um marco histórico da campanha eleitoral de 2022.
Para além da simbologia de que a sociedade brasileira não admitirá qualquer arbitrarie dade e desrespeito ao resultado das urnas, o manifesto tem um efeito de dissuasão relevante, que poderá desestruturar grupos apoiadores de Jair Bolsonaro e atores institucionais dispostos a embarcar numa estratégia autoritária golpista, consideram os analistas.
"[A carta] renova algo basilar em qualquer democracia, que é o compromisso das pessoas em geral, mas principalmente das elites, com o jogo democrático. Esse princípio precisa ser renovado de forma permanente, porque é contingente. A adesão à democracia pode se erodir", afirma Magna Inácio, cientista política e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, e editora do Pex Network (Executives, presidents and cabinet politics).
"O que temos assistido nestes anos de governo tem sido a tentativa do presidente e de seus apoiadores de provocarem a erosão desdes valores, dessa adesão à democracia", aponta.
O manifesto foi inspirado na chamada Carta aos Brasileiros de 1977, um texto de repúdio a ações da ditadura militar, redigido pelo jurista Goffredo da Silva Telles.
Signatários de peso pressionam por respeito às urnas
A relevância econômica e política dos signatários da carta, articulada por antigos alunos da USP, serve de alerta e exerce pressão às próprias instituições, pontua Andrea Freitas, professora no Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
"Estamos falando não apenas de um número muito grande de pessoas, indivíduos que assinaram, mas de um número grande de organizações basilares, tanto da economia, quanto da academia e da elite política brasileira. Temos um conjunto de atores relevantes assinando a carta, além de um conjunto muito grande de cidadãos assinando, o que dá muita força a esse ato simbólico e pressiona as instituições responsáveis por garantir a continuidade do sistema democrático a ficarem atentas", considera.
Até a manhã desta quinta-feira, a carta já contava com mais de 900 mil assinaturas. Entre os signatários estão os banqueiros Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles, do Itaú Unibanco; Candido Bracher, ex-presidente do banco; e o ex-presidente do Credit Suisse no Brasil José Olympio Pereira.
Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, que é novamente candidato ao Planalto, também assinaram. Michel Temer, que se formou em Direito na USP e foi professor de Direito constitucional, prometeu assinar.
Empresários que simbolizam a elite econômica, como o ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) Horácio Lafer Piva também não hesitaram em endossar o documento. Ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), artistas, acadêmicos e entidades de peso, de diferentes espectros da sociedade, também assinaram a carta.
Um segundo manifesto, intitulado Em defesa da democracia e da Justiça e apelidado de "carta das entidades" ou "carta dos empresários", foi articulado pela Fiesp e assinado também pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban). O documento também deverá ser lido na Faculdade de Direito da USP nesta quinta – data em que, há exatos 195 anos, foram criados os dois primeiros cursos superiores de Direito do país.
Para o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a adesão da Fiesp e da Febraban à "carta dos empresários" é um fato sem precedentes históricos. "Estamos falando de setores muito poderosos, e por isso poderosos também politicamente, e que muito raramente se manifestam."
A ameaça à democracia é real, considera Couto, e a mobilização da sociedade é uma clara resposta de que rechaça uma saída que não seja democrática e de acordo com o sistema eleitoral vigente.
"Estamos lidando com um grupo político muito radical, extremista e inclusive armado. Tudo isso têm produzido ações de violência política, como temos visto. Esse ato mostra que, se houver tentativa de permanência no poder pela força, isso vai ser dificultado. Esse é o recado mais importante. Pode funcionar como elemento de dissuasão", analisa o professor da FGV.
Tiro no pé e isolamento de Bolsonaro
Para o analista político Carlos Melo, professor do Insper, a reunião de Jair Bolsonaro com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho, em que o presidente mais uma vez suscitou dúvidas sobre a lisura do processo eletrônico de votação e sugeriu que militares garantissem a segurança de eleições, foi um tiro no pé.
"Essa reunião foi o gatilho para esse manifesto [Carta às brasileiras e aos brasileiros]. E ali ficou claro que Bolsonaro está diplomaticamente isolado, economicamente isolado do ponto de vista internacional", afirma. O vídeo da reunião foi retirado do ar pelo YouTube nesta quarta-feira.
Segundo Melo, a recente declaração do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd J. Austin III, na Conferência dos Ministros da Defesa das Américas, realizada em Brasília no fim de julho, teve um efeito "vexatório" para o governo brasileiro. Lloyd defendeu o controle civil firme dos militares nas democracias. Os sinais enviados pelos Estados Unidos são claros, além de várias outras democracias que rechaçam um golpe no Brasil, aponta Melo.
"Bolsonaro pode contar com quem? Com a Hungria? A Rússia tem coisas mais importantes para resolver neste momento", ironiza o professor.
Se por um lado há os signatários de sempre, comprometidos, por princípio e por valor, com a democracia, por outro, os manifestos e abaixo-assinados em defesa da democracia trazem novidades, de acordo com o analista.
"O que tem de novo aí é que setores econômicos e agentes econômicos importantes passaram assinar. Pode até ser que assinem por princípios democráticos, obviamente, mas certamente também porque perceberam que a democracia tem um valor econômico, não é só um capital político."
Para Melo, expoentes do PIB brasileiro perceberam que qualquer tentativa de ruptura no Brasil criará um ambiente de instabilidade que afetará, de imediato, os negócios, as exportações brasileiras e a economia como um todo. "O Brasil vai perder clientes", sentencia.
O efeito eleitoral
Apesar de já contar com mais de 900 mil assinaturas, é pouco provável que a Carta às brasileiras e aos brasileiros mude o cenário eleitoral, avaliam os analistas políticos ouvidos pela DW Brasil. Os organizadores dos atos democráticos pelo país e do documento fazem questão de pontuar que se trata de uma mobilização suprapartidária e que os votos de cada um não estão em jogo, e sim o compromisso democrático. Além de Lula, assinaram a carta os candidatos Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB).
"Do ponto de vista eleitoral o efeito é relativo. Talvez [o ato] consiga a adesão de alguns setores que estavam mais resistentes em relação ao Lula. É evidente que o manifesto, embora não tenha sido feito para favorecer o Lula, favorece a oposição ao Bolsonaro. Chama a atenção de alguns setores para a dramaticidade do momento. Mas, em termos eleitorais, de quantidade de votos, talvez não seja um grande efeito. O valor desse ato é político e econômico. Tem um poder dissuasivo", analisa Melo.
Para a professora Magna Inácio, a carta tem um impacto eleitoral na medida em que reforça um compromisso dos candidatos com a democracia e impõe essa agenda na campanha. "Isso tem uma importância fundamental na medida em que cria a ambiência para a construção de compromissos políticos entre os candidatos e esses setores da sociedade. Tem um processo de construção e de reforço da democracia que deve ser parte de compromisso de qualquer candidato. Essa mobilização tem esse potencial."
O efeito de dissuasão dos atos democráticos pode abrir pontes para um diálogo futuro, complementa a cientista política da UFMG: "Mais do que pensar nos efeitos desta mobilização sobre o eleitor individual, que obviamente tem efeitos, é importante entender como esse processo deflagra a construção de compromissos dentro das elites políticas e econômicas com outros setores estratégicos da sociedade."
Silêncio do Congresso e a sombra do Capitólio
Neste movimento de pressão, que empareda as instituições em defesa da democracia, o silêncio do Legislativo federal, em especial da Câmara, causa incômodo e surpresa, segundo os especialistas.
As mobilizações em defesa da democracia têm efeito preventivo, afirma Andrea Freitas, da Unicamp. "O Supremo e o TSE têm passado mensagens muito fortes sobre não aceitarem notícias falsas relacionadas às urnas eletrônicas, em especial. Acho que essa é uma medida de contenção que está sendo realizada para evitar que aconteça o que aconteceu nos Estados Unidos, a invasão do Congresso americano. Algumas instituições estão reagindo, mas sinto falta da reação do Legislativo, por exemplo. Seria muito importante que estivesse junto com o STF e o TSE nesta antecipação e criando barreiras, contenção para qualquer ação violenta após a eleição."
As ameaças de Bolsonaro à democracia, segundo a professora Magna Inácio, já saíram do campo da retórica há tempos, e há movimentos institucionais, com a participação de agentes do Estado, dentro do Executivo, que dão suporte à posição do presidente.
"Há uma diferença quando essa defesa se amplia, sai do âmbito de apenas atores institucionais, e de uma forma ambígua, como é o caso do presidente da Câmara [Arthur Lira], e transita para uma mobilização mais ampliada", avalia.