A reunião da Assembleia Geral da ONU realizada na terça-feira, 23, serviu de palco para atualizações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos. Distanciados ideologicamente e em meio a um embate tarifário, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Donald Trump sinalizaram uma possível mudança de tom nas discussões sobre a relação dos dois países.
Como é tradição na assembleia, o representante brasileiro foi o primeiro a discursar. Lula utilizou o momento para reafirmar a defesa da soberania nacional, democracia e multilateralismo – reconhecendo a importância de responder às problemáticas de implicância internacional de forma coletiva e cooperativa, ainda que respeitando os limites jurídicos de cada nação.
O petista lembrou que “atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais estão se tornando regra” no mundo. Para Lula, a falta de participação colaborativa entre os países e adoção de posturas autocráticas evidenciam o enfraquecimento de regimes democráticos.
Mesmo adotando contraste com a narrativa trumpista, Lula foi elogiado pelo presidente americano. Ao assumir a tribuna da Assembleia da ONU, Trump afirmou ter combinado um encontro com o brasileiro para a próxima semana e disse que os dois tiveram “excelente química” em breve diálogo.
“Não tivemos muito tempo para conversar, foram cerca de 20 segundos, mas ainda bem que eu esperei. Nós concordamos em nos encontrar na próxima semana. Ele [Lula] me pareceu um homem muito legal. Eu gostei dele, e ele gostou de mim. E eu só faço negócios com pessoas de quem eu gosto”.
Essa foi a primeira vez que o petista viajou ao país norte-americano desde que a Casa Branca impôs o tarifaço punitivo a exportações brasileiras e sanções a membros do governo e do Supremo Tribunal Federal (STF) – uma retaliação ao processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de Estado.
Neste texto, a IstoÉ conversa com internacionalistas para entender as implicações dos discursos do Brasil e EUA no palanque da ONU e o que isso aponta sobre a relação dos dois líderes.
Lula fala ao mundo, Trump mira seu eleitorado
Segundo levanta o professor de relações internacionais da ESPM Gunther Rudzit, diversas jurisdições participantes da Assembleia Geral da ONU sabem que as falas de seus pronunciamentos serão usadas para o público interno – é o caso de Donald Trump.
Enquanto Lula opta por um discurso voltado à comunidade internacional, na direção de apresentar um governo diplomático e soberano frente aos embates com outras nações, o americano direciona suas palavras ao público doméstico e interno, agradando o eleitorado que já possui.
Na mesma linha, a professora de Relações Internacionais do Instituto Mauá Carolina Pavese reitera que a fala de Trump enfatizou sua postura isolacionista, divergindo do petista que, por sua vez, aproveitou para marcar os avanços que se fez na agenda brasileira e colocar o Brasil como um interlocutor e defensor do Sul Global.
“Há uma uma divergência clara em como os dois presidentes abordaram e encararam essa ocasião. A fala unilateral voltada para dentro, para o ambiente doméstico de Trump, é extremamente coerente com a forma que ele tem conduzido sua política externa”, reitera Pavese.
Para os analistas, o Brasil se colocou de maneira assertiva na defesa dos seus interesses nacionais e no posicionamento sobre às grandes questões da agenda global, como combate à fome, proteção das instituições democráticas para além da experiência brasileira, questões climáticas, regulamentação das redes, etc.
Apesar de não trazer novidades, o pronunciamento brasileiro – por ser o primeiro – tem força de pautar o tom do resto da Assembleia.
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Tribuna da ONU como espelho
Nota-se um contraste grande entre Lula e Trump no quesito da moderação internacional. O Multilateralismo Global, em particular o defendido e praticado no contexto da Assembleia Geral da ONU (AGNU), foi um conceito central dos discursos, sendo o palco da AGNU definido como a “casa do multilateralismo”.
A fala do brasileiro demonstrou um forte compromisso com a cooperação global, deixando claro que as articulações com outros países visam complementar e diversificar a política externa e as relações, não substituir outras agendas. Com a fala, Lula ressalta que posturas individualistas são incompatíveis com os compromissos globais e se afasta de governos de direita radical.
Para Gunther Rudzit, o líder americano enxerga a defesa do multilateralismo como um afastamento da autocracia norte-americana e alinhamento com outras potência globais – como a China de Xi Jinping. Apesar disso, é válido lembrar que presença na tribuna da ONU – “casa do multilateralismo” – naturalmente impele a defesa de órgãos multilaterais, postura adotada pela maioria dos estados-membros.
“Essa é a grande questão da defesa muito enfática ao multilateralismo: pode parecer um alinhamento ao governo chinês e isso pode atrapalhar o estabelecimento de um contato entre os dois presidente”, pondera o professor.
Quem sabe faz ao vivo
Um fator que chama atenção dos analistas é que o discurso de Donald Trump foi improvisado, sem leitura formal do pronunciamento. Conforme destaca Pavese, a menção a Lula ainda carrega a força de ter sido feita publicamente, ao vivo, em frente à diversas outras nações.
“Foi, inclusive, uma menção feita de maneira oficial, em um discurso oficial do presidente. Então é muito diferente de um ‘tuíte’ ou algo de bastidores”, ressalta professora.
Mesmo que a gestão trumpista seja notavelmente imprevisível, o aceno ao petista indica um ponto diferente dos já vistos até o momento. Desde julho, o posicionamento do Brasil mostra que interferências em questões internas não serão acatadas, no que Trump recalcula o embate para garantir vantagem.
“Isso mostra uma guinada muito clara, pelo menos no ponto de vista do discurso, dessa ruptura que havia nas relações dos Estados Unidos com o Brasil – e nesse sentido há uma possibilidade de se abrir espaço para um diálogo. Se esse diálogo vai ser frutífero no sentido da reversão das tarifas, é muito cedo para se determinar.”
Por fim, Pavese indica que a reunião da terça-feira teve saldo positivo para o governo brasileiro, que conseguiu demonstrar firmeza nas decisões tomadas no âmbito interno e externo.
“Acho que Lula conseguiu impor respeito. E Trump deixou isso muito claro quando ele menciona uma admiração ao brasileiro. Lula não se curvou e não curvou o Brasil à agenda de Trump e manteve sua posição firme. Acredito que talvez isso tenha gerado um sentimento até de identificação com Lula enquanto uma liderança forte. E isso pode abrir margens para um diálogo importante”, conclui Pavese.