Abel Ferrara conversa com o Estadão pelo telefone, de Roma. O repórter lembra antigas entrevistas – em Cannes e Veneza – quando ele, do nada, levantava e corria ao banheiro, do qual voltava acelerado. “Se as drogas e a bebida não me destruíram, não há de ser esse vírus que vai me matar.” Agora pai de família, consciente, ele segue todos os protocolos de segurança numa Itália novamente assolada pelo coronavírus. “Uso máscara, lavo as mãos. Estou me cuidando – o problema são os outros. O confinamento dói. Não nasci para viver isolado. Música, cinema, tudo o que gosto fica melhor com interação.”

Ferrara, aos 69 anos, integra o grupo de risco. Quer saber se o repórter também está se cuidando. Ele apresenta dois filmes na 44ª Mostra de Cinema. Em fevereiro, levou Siberia ao Festival de Berlim – sua nova parceria com Willem Dafoe. E foi lá que começou a nascer o outro longa na programação da Mostra – Sportin’ Life. Um diário da covid, Ferrara e seus amigos músicos, o amigo Dafoe, a lembrança dos filmes. O que é o cinema, afinal? Para Ferrara, sempre foi comprometimento. Ele não filma por filmar. Tem de ter motivação. Anos atrás fez outro diário, Alive in France. Tem se dado bem na Europa. “Aqui eles têm uma consciência mais aguda do cinema como arte. Na América você vale pelo seu último filme. Se fez sucesso, tudo bem. Se não, todo mundo te rejeita.”

Siberia é a sexta colaboração de Ferrara com Dafoe em mais de 20 anos. “Ele não é um ator tradicional. Veio do teatro experimental, está sempre pronto para ousar, e surpreender. É um daqueles atores que sempre conseguem surpreender a gente.” Dafoe faz um norte-americano exilado na paisagem gelada da Sibéria. Tem um bar, atende no balcão. O filme viaja na cabeça desse homem. Ao mesmo tempo, Siberia é um filme de paisagem. “Sim, a neve é personagem”, concorda ele. Dafoe – o personagem – é atormentado por seus fracassos. Tem uma cena forte de sexo que deflagra a mágoa de um antigo casamento. O filme tem ataque de urso, cães que puxam trenós. Caninos Brancos? Ferrara conseguiu fazer o seu Jack London.

“Não pensava dessa maneira, mas li muito Jack London e ele estava em algum lugar adormecido no meu inconsciente. A paisagem trouxe-o de volta.” Não só a paisagem, a própria rudeza do relato. Como autor de histórias muitas vezes violentas, Ferrara sempre questionou códigos de gêneros. Masculinidade, virilidade. Gângsteres, policiais, muitos críticos consideram Ferrara um Martin Scorsese mais selvagem. Seus (anti)heróis vivem na desordem social, no limite da autodestruição, mas buscando a redenção – como o próprio Ferrara? “Não sei como consegui sobreviver a tanta loucura. É um milagre. E quando você fica velho ganha respeito pelo simples fato de haver sobrevivido”, reflete.

Nova-iorquino do Bronx, Ferrara mudou-se para a Itália após o 11 de Setembro. Numa entrevista anterior, em Cannes, já revelara para o repórter sua atração pelo budismo. Não era bem uma conversão. “Esses caras, Cristo, Buda, Maomé, tinham só a palavra e com ela mudaram o mundo.”

Sportin’ Life começou a nascer em Berlim, em fevereiro, e estreou no Festival de Veneza em setembro. Um diário em vídeo. Meses na vida de Ferrara – no mundo pré e pós-covid. Ele filma a mulher (Cristina), a filha (Anna), os amigos (Dafoe e Joe Delia).

Conversam, cantam, evocam filmes como The Addiction e Pasolini, mas o mundo invade as imagens e Ferrara integra o caso George Floyd e o Black Lives Matter. Muita coisa ocorreu nesse ano atípico. “Os EUA ficaram impossíveis para se viver sob Trump”, diz. Contra essa (des)ordem, Ferrara segue filmando.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.