CONTROLE Consumidora confere preços em supermercado durante o plano Cruzado, em 1986 (Crédito:Alexandre Tokitaka)

O governo conseguiu ressuscitar momentos sombrios que já pareciam relegados à lata de lixo da história. Por exemplo, a exaltação da ditadura militar e da tortura. Com a reeleição cada vez mais inviabilizada e a crise econômica fora de controle, traduzida por uma inflação galopante, o presidente resolveu reviver outra peça do imaginário popular que os mais novos só têm conhecimento pelos livros: a sucessão irracional de congelamentos e truques fiscais que se multiplicaram nos anos 1980 e 1990 para tentar artificialmente conter os preços e trazer algum alívio para os consumidores.

É o que José Sarney fez com os planos Cruzado (86), Bresser (87) e Verão (89). Fernando Collor tentou o mesmo no plano batizado com seu nome que culminou em um nefasto confisco de poupanças e contas bancárias. E Bolsonaro acaba de propor a volta de barbaridades desse tipo. O mandatário lançou um apelo em um encontro da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) para que os empresários “tenham o menor lucro possível para dar uma satisfação à população”. Seu ministro da Economia pediu uma “trégua” ao longo da cadeia produtiva. “Nova tabela de preço, só em 2023. Trava os preços! Vamos parar de aumentar por dois ou três meses, estamos em uma hora decisiva!”, emendou Paulo Guedes.

São pedidos desesperados que fogem de qualquer racionalidade econômica e têm o único propósito de dar algum alento eleitoral para Bolsonaro em outubro (com pouca chance de sucesso, como mostram as pesquisas). Para alguém que se orgulha de ser um ultraliberal da escola de Chicago, como Guedes, tais propostas chegam a ser aberrações que ofendem a memória de Friedrich Hayek e fazem até Adam Smith se revirar no túmulo. Por isso, ao ter suas ideias de neocongelamento divulgadas, mais uma vez se desdisse e negou o óbvio. “É patético dizer que vai ter congelamento, é fantasma de tolices feitas no passado”, afirmou com a verve que lhe é peculiar. Como já dizia Mark Twain, uma meia verdade é a mais covarde das mentiras. O titular da Economia provou mais uma vez que o governo já mergulhou no vale-tudo populista.

CLIMA ACIRRADO Agentes públicos fazem a fiscalização de supermercados na cidade de São Paulo em julho de 1987 (Crédito:Cesar Diniz/AE)

“Qualquer medida que vise segurar preços artificialmente é um perigo. A conta aparece cedo ou tarde e quem paga é a população” André Braz, economista do IBRE-FGV

Há quase 40 anos, quando a inflação disparou, o então presidente estimulou a criação dos “fiscais do Sarney”, recrutando populares que se orgulhavam de esquadrinhar gôndolas, ameaçar gerentes de lojas e fechar supermercados no braço. Era a época dos bois escondidos nos pastos e das maquininhas remarcadoras. Ainda não chegamos lá, mas estamos perto. Produtos são maquiados nos supermercados e matérias-primas são substituídas na composição dos produtos para disfarçar as altas (a “reduflação”). Bolsonaro há pouco tempo mandou os caminhoneiros fiscalizarem os preços dos combustíveis nas bombas. E procura culpados para o descontrole de forma irresponsável: Petrobras, empresários, governadores, prefeitos, a Ucrânia e o coronavírus. Seu pânico ocorre porque nos últimos 12 meses o preço da gasolina subiu 28,73%, o gás de botijão aumentou 29,39% e o óleo diesel ficou 52,27% mais caro. Para forçar a Petrobras a segurar os preços na marra, demitiu de supetão três presidentes da companhia e sacou o ministro das Minas Energia, substituindo-o por um bolsonarista conhecido por criar brigas no Congresso, que assumiu com a missão de privatizar a estatal a poucos meses do final do mandato. Tudo cortina de fumaça.

SÍMBOLO A maquininha remarcadora, acionada às vezes mais de uma vez por dia, foi uma das marcas da hiperinflação (Crédito:ARQUIVO AE)

O economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, diz que é preocupante a sociedade tentar caminhos que já fracassaram tantas vezes na história do País. “Existem mecanismos clássicos para tratar a inflação. Congelamento de preços não é um deles”, afirma. Para ele, voltar a insistir nisso só representa um populismo de curto prazo que vai custar caro para o Brasil por razões totalmente oportunistas. O economista Euzébio Jorge Silveira de Sousa, da FEA-USP, afirma que políticas de “períodos bastante excêntricos do passado” foram abandonadas por sua incapacidade de gerar efeitos positivos para a economia e se mostraram muito prejudiciais. “Todas as vezes que a gente congela os preços, cria algum tipo de distorção. Alguém tem mais prejuízo, outro tem mais vantagem naquele momento. Isso pode promover uma aceleração da inflação exatamente porque no momento em que os preços são liberados todo mundo vai numa corrida elevar os valores”, diz. Para o especialista, o presidente parece o tempo inteiro criar medidas estranhas ao processo econômico para em algum momento o Parlamento, o Congresso ou o Judiciário brecar, e com isso gerar um discurso eleitoreiro de que tentou fazer algo e não conseguiu.

“Qualquer medida que vise segurar preços artificialmente é um perigo pois você planta vento para colher tempestade”, faz coro André Braz, coordenador do IPC do IBRE-FGV. Para ele, a conta aparece cedo ou tarde e quem paga é a população. “Isso também joga contra a política monetária, porque se houver intervenção dos preços a autoridade monetária fica um pouco perdida em como isso pode afetar a inflação no médio e longo prazo. Gera muito mais incerteza e faz com que os agentes econômicos percam a fé no Brasil.” Sousa diz que o presidente dá informações erráticas na economia e amplia a incerteza em relação ao futuro, gerando um processo de instabilidade e afastando investimentos estrangeiros que poderiam ampliar a capacidade produtiva. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que é aliado de Bolsonaro, tentou contemporizar.”Temos uma sociedade de livre mercado. Acho que o que o ministro Paulo Guedes reivindicou e suplicou foi realmente a responsabilidade social de todos os brasileiros na sua atividade produtiva. Ninguém obviamente pretende sacrificar o lucro, nem acredito em congelamento de preços, não é esse o caminho”, disse.

As súplicas desesperadas do presidente e seu ministro foram recebidas com ceticismo pelos empresários, como era de se esperar. “É um tiro no pé enorme”, diz Luiz Gustavo Santos e Silva, presidente da Associação Brasileira do Varejo (ABV). Para ele, trata-se de “estrangular o estrangulado”. Ele lembra que a inflação é o que mais afeta a popularidade dos candidatos. E ela continua nos dois dígitos, ao contrário das previsões irreais de Guedes de que “o inferno da inflação ficou para trás”. O IPCA nos últimos 12 meses atingiu 12,23%, segundo o IBGE, o que levará o Banco Central a aumentar as taxas de juros, tornando os empréstimos mais caros e freando a economia. Isso tudo afeta o bolso da população e influencia o pleito. Daí a criação de medidas populistas e eleitoreiras, que devem trazer um efeito perverso. O representante dos varejistas diz que segurar preços só leva num segundo momento a um ajuste acumulado e mais agressivo, que levará a um grande problema para o próximo presidente já na largada do mandato.

CONGELAMENTO Paulo Guedes e Bolsonaro pediram aos empresários para “travar os preços” e “diminuir os lucros” (Crédito:Pedro Ladeira)

Outra medida igualmente nociva o presidente já está conseguindo concretizar com a ajuda do Centrão no Congresso. Para tentar transferir a responsabilidade das altas para os governadores, foi aprovada na quarta-feira uma lei que limitará em 17% a alíquota do ICMS (principal imposto dos estados) sobre combustíveis, energia, telecomunicações e transporte coletivo. O rombo só no cofre dos gestores estaduais vai ultrapassar R$ 80 bilhões em 12 meses. Para compensar parcialmente, Bolsonaro e seus aliados encontraram uma fórmula que permite reembolsar parcialmente os governadores até o final do ano, mas os dispositivos aprovados na Câmara não compensam a perda – na verdade, pode nem haver ressarcimento. Uma PEC ainda em tramitação visa ressarcir os estados também parcialmente no caso destes zerarem tarifas sobre diesel e gás. As gambiarras vão custar quase R$ 50 bilhões aos cofres públicos neste ano.

Sem alívio nas bombas

Parte da justificativa para tirar o dinheiro dos governadores tem a ver com o aumento das receitas este ano, mas isso na verdade é um efeito da alta de arrecadação por conta da própria inflação, um efeito provisório. O remendo fiscal que compensa os estados dura até o final do ano, mas o buraco nas contas dos governos será permanente, o que vai drenar recursos principalmente a saúde e a educação. Os secretários de Fazenda estaduais haviam costurado um acordo no Senado para atenuar os cortes, mas os governistas na Câmara tratoraram essa negociação. Governadores denunciam, com razão, que o governo está impondo na prática uma quebra do pacto federativo. Todas essas mudanças deverão ter um efeito mínimo no controle da inflação, mas podem, ao contrário, criar ainda mais danos para uma economia que acaba de atravessar mais uma década perdida.

E o alívio nas bombas de combustível pode nem se concretizar, já que o preço do petróleo continua a subir no exterior e o dólar deve se manter elevado com o aumento das taxas de juros nos EUA (sem contar o aumento causado pela instabilidade gerada pelas ameaças golpistas do presidente). A Petrobras precisa manter a paridade com os preços praticados no exterior para evitar que a defasagem desestimule os importadores de combustíveis (o Brasil não é autossuficiente nos produtos refinados), algo sensível especialmente em relação ao diesel, que está em falta no mercado internacional. A defasagem calculada pelo mercado em relação aos preços no exterior é de cerca de 20%. O risco de desabastecimento de diesel é concreto, como a própria direção da estatal já advertiu.

CRÍTICO Gustavo Defendi CEO da Real Cesta, diz “se a oferta é muito menor do que a demanda não tem jeito, o preço sobe“  (Crédito:Gabriel Reis)

A gasolina está há mais de 90 dias sem aumento, enquanto o diesel permanece congelado há mais de um mês, apesar da alta crescente no exterior. A Petrobras previa novo aumento dos valores nos últimos dias, mas Bolsonaro pressionou para a estatal segurar o reajuste até a conclusão da votação dos projetos no Congresso. Uma reunião entre diretores da estatal (inclusive o presidente demissionário) e representantes do governo não teve acordo. E mesmo que o mandatário consiga maquiar os preços nos postos por algum tempo, dificilmente mudará o humor dos eleitores até a votação.

“O governo está desesperado. A gente sabe que essas medidas não vão resolver o problema. Os combustíveis não irão baixar nas bombas. Pelo contrário, vão continuar subindo”, protesta Wallace Landim, o Chorão, ex-aliado de Bolsonaro e representante dos caminheiros da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotores (Abrava). Especialista em finanças e diretor executivo da Wealth, Investments & Trust, empresa especializada nas áreas de câmbio e remessas internacionais, Tomás Zakia acha que o corte temporário dos impostos pode impactar o preço dos itens e arrefecer a inflação, mas diz que é preciso avaliar se os empresários repassarão realmente a redução no preço final. “Não há essa garantia”, afirma. “Mais valeria uma reforma tributária completa do que medidas provisórias, tentando apagar incêndios do momento.”

Diretor da Real Cestas, uma das maiores redes de distribuição de cestas básicas do estado de São Paulo, o empresário Gustavo Defendi diz que tem dúvidas se a redução de impostos vai chegar ao preço final dos alimentos. “Tem outros fatores que influenciam. Por exemplo, o dólar é um problema, pode haver quebra de safra. Por mais que você tenha redução, se a oferta é muito menor do que a demanda não tem jeito, o preço sobre”, afirma. Ele também aponta outros vilões da inflação, como os encargos trabalhistas. “Todos os dissídios coletivos foram de mais de 10%. A matéria-prima e as commodities subiram muito.”

No caso da Petrobras, a intervenção escrachada não é novidade e foi política de governo na gestão Dilma Roussef. Quase quebrou a empresa, que se tornou uma das mais endividadas do mundo. Isso não conteve a inflação, que também alcançou dois dígitos durante seu mandato. Também fugindo da inflação e da estagnação, a ex-presidente acelerou gastos irracionais que se mostraram inúteis e não reativaram a economia. Ao contrário, isso gerou a maior recessão da história e a petista acabou sofrendo o impeachment acusada exatamente de praticar pedaladas fiscais.

“É preocupante tentar caminhos que já fracassaram tantas vezes. Voltar a insistir nisso é um populismo que vai custar caro” Marcos Lisboa, economista e presidente do Insper (Crédito:Fabio Braga)

Também para reduzir artificialmente os preços de energia elétrica, o governo Dilma quebrou contratos e desorganizou o todo o setor. Até hoje o consumidor paga o preço nas contas de luz. Depois de um curto período de rearranjo institucional praticado pelo presidente Michel Temer, que criou uma lei para afastar o uso político das estatais e o próprio teto de gastos para evitar o endividamento irresponsável, os puxadinhos e artificialismos voltaram com força no atual governo. Além dos últimos truques fiscais, o governo Bolsonaro já aprovou uma emenda constitucional para adiar o pagamento de precatórios, manobra que ignora direitos adquiridos e lembra o período da hiperinflação, criando uma bomba fiscal para as próximas décadas. “Eu temo que a gente esteja em uma rota que a gente já viveu no passado. A minha geração viu na juventude essa lenta degradação da economia com todos os truques institucionais. Espero que essa máxima insensatez seja interrompida, mas confesso que a esperança está muito baixa com tudo o que está acontecendo”, diz Lisboa.

Medidas como as descritas acima trazem o fantasma dos planos heterodoxos e das soluções mágicas que foram abolidas com o Plano Real. As novas distorções tributárias ocorrem em um governo que voltou a fazer uso eleitoreiro e sem limites das contas públicas, num verdadeiro estelionato eleitoral. Se reeleito, Bolsonaro promete radicalizar nessas ações intervencionistas. Já o atual líder nas pesquisas, Lula, declarou que pretende abolir o teto de gastos e mostra pouco entusiasmo com o arcabouço legal que garantiu a responsabilidade fiscal e o fim da gastança desenfreada. O populismo econômico, tudo indica, voltou.