O escritor inglês Ian McEwan é reconhecido como um dos mestres narradores da atualidade. Romances como “Reparação” (2001) e “Solar” (2010) lhe conferiram prêmios e indicações recorrentes ao Nobel, pela forma reflexiva com que discutiu dilemas morais e os efeitos prejudiciais da tecnologia sobre a civilização.

DOIS TEMPOS Ian McEwan em 2014, no auge da glória literária, e em 1976, quando suas tramas de horror lhe valeram o apelido de Ian Macabro (Ian Macabre)

Seus romances de ideias se avolumaram na última década, a ponto de ofuscarem a mudança de reputação que ele experimentou ao longo de 44 anos de carreira. Aos 27 anos, em 1975, ficou famoso com um livro de contos, “Primeiro amor, últimos ritos”, por causa dos relatos em que misturava tecnologia e horror. Entre 1975 e 1987, vieram mais cinco romances góticos. Ele provocou tantos calafrios nos leitores que virou um autor pop ao estilo de Stephen King e recebeu o apelido de Ian Macabro (Ian Macabre). Mas hoje, aos 71 anos, exibe a reputação de clássico. Mesmo assim, seu novo romance, “Máquinas como eu” (Companhia das Letras), o 15º da carreira, está sendo considerado pelos críticos uma genuína ficção científica pop e um retorno ao teor sinistro de sua obra de juventude.

O tema do romance induz os leitores a fazer essa associação, pois se trata da história de um ser humano sintético portador de inteligência artificial. Adão se envolve em um triângulo sexual com dois jovens seres humanos habitante da Londres dos anos 1980, Charlie e Miranda. McEwan ficou negativamente surpreso com a repercussão de seu livro junto à crítica, pois não o considera pertinente ao gênero ficção científica. Em várias entrevistas, afirma que deseja ser colocado na mesma prateleira que os grandes autores ingleses. E ameaça: “Se você me chamar de escritor de ficção científica, vou à sua casa e prego a cabeça do seu cachorro à mesa!”

Nessa advertência irônica, ele não contém o preconceito contra o gênero, embora a ficção científica tenha gerado vários notáveis romances universais que versam sobre androides, engenharia genética e rudimentos da inteligência artificial.

Sexo com robôs

“Máquinas como eu” pode receber a etiqueta de “romance especulativo” ou “história alternativa” — aquela que parte da pergunta “e se…?” para distorcer os eventos do passado. O objetivo de McEwan é debater os efeitos éticos da tecnologia. O tema do autômato se presta à reflexão e é recorrente na ficção científica desde “Frankenstein”, de Mary Shelley. O escritor aborda a questão da tecnologia ao avesso da perspectiva de Mary Shelley, que estabeleceu, desde a publicação de “Frankenstein”, 1818, a linha mestra do gênero em suas muitas vertentes: a capacidade que a ciência tem de fugir ao controle e aniquilar a humanidade. McEwan enfatiza um ângulo diferente, o do efeito perturbador que a ciência exerce sobre os sentimentos dos indivíduos. “O monstro [de Frankenstein] é a metáfora para ciência fora de controle, mas o que me interessa é o ser humano fora de controle”.

A trama de “Máquina como eu” é ambientada num ano de 1982 diferente do real, embora a guerra das Malvinas esteja em curso. Os Beatles lançam um álbum duplo. O matemático Alan Turing não se matou em 1952 e é considerado o cientista mais influente do planeta.Ele ajuda a acelerar os avanços: lança a inteligência artificial, populariza a internet e incentiva a venda, em supermercados, dos primeiros androides ­— nas versões Eva e Adão. Este último item não impressiona as pessoas, pois já tinha sido antecipado pelas histórias de ficção científica.

“A imaginação, mais rápida que a história e o progresso tecnológico, já havia ensaiado o futuro em livros, e, mais tarde, em filmes e séries de televisão, como se atores humanos — caminhando com um olhar meio vidrado, movimentos fajutos da cabeça e certa rigidez na coluna vertebral — pudessem nos preparar para conviver mais adiante com nossos primos”, diz Charlie.
Diante do aumento dos autômatos puros, o homem se torna obsoleto. Charlie divide com a namorada Miranda o androide Adão, com seu aspecto robusto de “estivador do Bósforo”, capacidade de produzir o dobro de expressões faciais de um ser humano e dotado de uma enorme potência sexual. Miranda se acasala com o robô, que se apaixona por ela, para o horror de Charlie. O narrador critica o domínio da inteligência artificial dos autômatos e se resigna à profecia do jovem Turing: no instante em que for impossível distinguir máquinas e pessoas, será preciso atribuir humanidade à máquina. Sexo disruptivo entre elas e pessoas é um tema da ficção científica mais elevada. Mesmo que McEwan rejeite a comparação, sua porção Macabre deve aplaudi-la.