A Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) autorizou a TAV Brasil a construir o trem-bala e gerir sua operação por 99 anos. Holding com três empreses associadas, a TAV Brasil terá como CEO o economista Bernardo Figueiredo, que foi diretor da ANTT. O ministro dos Transportes, Renan Filho, disse à imprensa que o governo não tem participação na empreitada, falando em coro com a nova empresa, que divulgou a intenção de um projeto com 100% de capital privado. Difícil acreditar nessa realização. Entre 2005 e 2015, o governo tentou colocar nos trilhos o trem superveloz, promessa de campanha de Dilma, que desejava inaugurar a obra para a dinâmica de transportes da Copa de 2014. Se a máquina do governo não logrou sucesso nisso, mesmo em um período surfando em aprovação popular, quais as chances da TAV Brasil nessa nova tentativa?

O projeto foi deixado de lado, ainda na gestão Dilma, pelas controvérsias sobre sua viabilidade e pela ausência de interessados em participar do leilão para a escolha da empresa que assumiria o trabalho. A saga fracassada do trem-bala deixou uma herança maldita, a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), criada pelo governo em 2012, dedicada a prestar serviços na área de projetos, estudos e pesquisas em infraestrutura e transportes. O órgão consumiu milhões de reais por dez anos, sem avanços na área, até ser incorporado em 2022 pela Valec Engenharia, Construções e Ferrovias.

MAQUINISTAS Lula e Dilma Rousseff em um trem-bala alemão: obsessão de 20 anos (Crédito:Ricardo Stuckert/PR)

Agora, não é possível vislumbrar ainda um quadro animador ao projeto. A TAV Brasil é uma Sociedade de Projeto Específico, criada no ano passado, com capital social de R$ 100 mil. A empresa não dá detalhes do projeto antes de assinar o contrato com a agência reguladora, algo que pode levar até 30 dias, a não ser a divulgação de que, após a assinatura, inicia o trabalho de captação de investidores. Ciro Biderman, pesquisador, professor da Fundação Getúlio Vargas e diretor do recém-criado FGV Cidades, dedicado a questões de infraestrutura, mobilidade e habitação, se mostra cético. “Acho muito difícil esse projeto parar de pé só com tarifa. Precisa competir com a ponte aérea, então terá de trabalhar com um limite de preço. Terá de fazer as viagens com alta lotação, mas mesmo assim essa conta não fecha. De onde virá o retorno?”

No final do ano passado, a equipe de transição do governo Lula recebeu muitas sugestões de retomada de investimentos em obras portentosas. Entre os setores, o lobby da indústria naval é forte e cíclico. Desde Juscelino Kubitscheck nos anos 1950, passando pelo governo militar, pelas administrações recentes do PT e também de Bolsonaro, muitas tentativas apareceram, sendo que a maioria enfrenta um problema inicial incontornável: é mais barato comprar um transatlântico de um estaleiro na Europa ou na Ásia do que todo o investimento necessário para passar a fabricá-lo. Na década passada, a insistência levou a pelo menos mais de uma dúzia de instalações desse tipo. São exemplos o estaleiro gaúcho Rio Grande e o baiano Enseada. Hoje, após a turbulência das investigações da Lava-Jato, atrasos, superfaturamento, longos períodos fechados e episódios de recuperação judicial, esses gigantes ainda tentam sobreviver, mas longe da produção de navios. Praticamente todos se apegam a trabalhos de manutenção em embarcações.

NOVOS RUMOS Os estaleiros Enseada (BA) e Rio Grande (RS): afetados pelas investigações da Lava-Jato, hoje estes e outros pelo Brasil não fabricam navios, apenas fazem reparos em embarcações (Crédito:Raul Spinassé )
CLAYTON DE SOUZA

As refinarias imensas, que chegaram a ser uma espécie de troféu administrativo no regime militar, são criadas no País em ondas de entusiasmo intercaladas por períodos de problemas sérios. É o que acontece hoje com mastodontes com a Abreu e Lima e a Comperj. A primeira, em Ipojuca (PE), começou a ser construída em 2003 e só foi concluída em 2014. Com orçamento inicial de US$ 2,4 bilhões, custou cerca de US$ 18,5 bilhões. A carioca Comperj nem foi terminada. Sua construção foi iniciada em 2008 e interrompida em 2015, com 80% da obra pronta. Se concluída, seu custo deve chegar aos US$ 47 bilhões. As duas foram atingidas pelas delações da Lava-Jato, que revelaram esquemas ilícitos entre o governo e as maiores empreiteiras do País, que provocaram uma vasta revisão de contratos.

Nenhuma outra obra tira o posto de maior elefante branco brasileiro da Rodovia Transamazônica, que começou a ser construída em 1972 e nunca foi concluída. A rodovia deveria ser um marco do governo militar, mas em pouco tempo passou a justificar a piada famosa que define a estrada como “algo que liga o nada a lugar nenhum”. Ciro Biderman reafirma a vocação brasileira de elencar problemas com obras faraônicas, mas ressalta não incluir as criticadas e muito caras usinas nucleares em Angra dos Reis entre os projetos errados. “A rejeição à Angra veio muito com a tragédia em Chernobyl. Mas, apesar do bom uso de fontes eólicas e solares, a energia nuclear é uma boa alternativa aos combustíveis fósseis.” Angra 1 começou a operar em 1985, e se aproxima do limite recomendável de funcionamento desse tipo de usina, de 40 anos. Angra 2 entrou em atividade em 2001, enquanto Angra 3 ainda segue em construção.

O professor da FGV é bem-humorado ao criticar a tradição brasileira dos projetos grandiosos. “O governante sempre adora um brinquedinho, né? Ele acredita no retorno político de grandes obras, que também trazem grandes problemas. O País precisa muito mais de vários pequenos projetos.” Biderman explica que a obra megalomaníaca alimenta a mídia, passa à população a sensação de que está sendo atendida e permite ao governo investir uma boa parte de seu orçamento numa coisa só. “É uma espécie de preguiça administrativa, que joga todos os esforços num projeto grande e não precisa trabalhar com as várias demandas menores e essenciais. Esse modelo favorece as obras maiores.”

ELEFANTE BRANCO A Transamazônica (abaixo) foi aberta em 1972. Dos 8 mil km previstos, foi reduzida a 5,7 mil km no projeto, liberada com 4,2 mil km, e assim ficou (abaixo). No governo de Ernesto Médici (ao lado, à esq.), teve à frente Mário Andreazza (dir.), ministro dos Transportes, gestor de grandes obras no governo militar, como a Ponte Rio-Niterói

Eduardo Knapp

Roberto Stuckert
Roberto Stuckert

*Estagiário sob supervisão de Thales de Menezes