Autobiografias costumam fornecer as versões mais infiéis da vida de seus protagonistas. O filme inglês “Rocketman”, com direção de Dexter Fletcher e produção de David Furnish, pode ser visto como uma autobiografia oficial de Elton Hercules John — e também, como diz Fletcher, uma “fantasia musical”. Como ocorre nesse gênero, manipulação de eventos, bajulação do retratado e autocomplacência fazem parte da diversão. Mas o espectador pode também sentir de perto as emoções turbulentas do músico diante da glória, do abuso de drogas e da forma como assumiu a homossexualidade. Isso porque John participou do filme da concepção à pós-produção, a ponto de parecer que comanda os fios que movem o ator galês Taron Egerton, que o interpreta magistralmente.

Tempos ruins

Em comparação ao sucesso mais recente do gênero, “Bohemian Rhapsody”, sobre o cantor Freddie Mercury, o resultado de “Rocketman” é mais plausível e menos caricato. Enquanto o ator Rami Malek ganhou um Oscar porque personificou Mercury por trejeitos e movimentação no palco, Egerton convence a plateia que ele encarna Elton John sem se valer da caricatura. Até porque Egerton, de 29 anos, encarna o músico sem se parecer com ele nem na voz, nem ao menos na aparência. Na verdade, seu desempenho funciona como uma evocação — como o filme todo.

FANTASIA No sentido horário: Elton (Egerton) é ludido pelo empresário John Reid (Richard Madden); curtindo turnês em seu avião; em 1969, toca em Los Angeles e dá inicio à carreira ao “voar” no piano

Isso por uma razão: a ideia do filme surgiu de Elton John. Isso aconteceu há dez anos, quando sugeriu que o produtor Furnish (parceiro no musical “Billy Elliot”) fizesse um filme sobre o que ele sentiu quando começou a ficar famoso. Aconselhou que a história não se resumisse a uma biografia comum, narrada linearmente, com as músicas encaixadas no instante em que foram criadas. ”Seria maravilhoso um filme sobre minha vida que capturasse um tipo de espírito”, disse ao amigo. “O espírito de um tempo tal como uma pessoa o assimilou.” E completou, com a modéstia habitual: “Você sabe, minha vida tem sido tão grandiosa que contá-la de um modo normal não faria justiça a ela. Foi um tempo incrível e surreal. Eu queria que o filme fosse assim.”

“Rocketman” é assim. Retrata a parceria entre Elton e o letrista Bernie Taupin, geradora de canções clássicas do glam pop. Soltas da cronologia, as músicas dão o tom e a densidade dramática às ações. Reginald Kenneth Dwight (o nome de batismo de Elton) conta a sua história em uma reunião de dependentes de drogas em um centro de reabilitação. As aventuras com homens e mulheres ocorrem em bares, estádios e quartos de hotel (com direito a uma cena erótica entre Elton e o namorado), de 1967 a 1990.

DE FAMOSO A MAIS AINDA

O roteiro observa os preceitos das biografias de roqueiros: pais medíocres, encanto pela fama, assédio dos empresários (sempre inescrupulosos), drogas, consumismo e amores frustrados. Como é comum nessa espécie de fábula, o pop star percorre do inferno à remissão dos pecados para se reconhecer como herói sobrevivente de si próprio.

“Minha vida foi louca”, diz John. “Os momentos ruins foram muito ruins; os bons, muito bons. Infelizmente, não houve equilíbrio entre eles.” O lado bom do filme é arrastar a plateia à espiral inebriante da cultura das celebridades.