Durante anos, o sobrevivente de Auschwitz Naftali Furst, de 92 anos, manteve silêncio sobre a sua história. Mas, desde que sua neta sobreviveu ao massacre de 7 de Outubro no kibutz Kfar Aza, ele está mais determinado do que nunca a falar.
Com o antissemitismo em níveis raramente vistos desde a Segunda Guerra Mundial, Furst alerta: “Se esquecermos nossa história, corremos o risco de vê-la se repetir.”
Oitenta anos após o Exército Vermelho libertar o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, em 27 de janeiro de 1945, a AFP falou com oito sobreviventes dos horrores do Holocausto que reconstruíram sua vida em Israel.
O campo, na Polônia ocupada, tornou-se o símbolo do genocídio cometido pela Alemanha nazista, com 1 milhão dos 6 milhões de judeus que morreram no Holocausto assassinados dentro de seus limites.
Cerca de 130.000 sobreviventes vivem em Israel, segundo autoridades do país. Esse número inclui aqueles forçados a fugir dos nazistas ou perseguidos em países ocupados. Seguem abaixo algumas de suas histórias:
Naftali Furst tinha 10 anos quando foi preso com sua família e enviado para um campo de concentração, indo parar em Auschwitz em novembro de 1944. Lá, ele foi separado de seus pais e ganhou um número tatuado no braço.
Com a aproximação das tropas soviéticas, os nazistas obrigaram os prisioneiros restantes a fazer uma “marcha da morte” pela neve do inverno em direção à Alemanha e Áustria.
Aquelas semanas foram “as piores da minha vida”, lembrou Furst. “Foi uma experiência indescritível.”
O sobrevivente e o irmão viram “muitas pessoas caírem mortas ou desmaiar na beira da estrada. Aqueles que não conseguiram acompanhar foram mortos no local. Sobreviver significava lutar para não ser deixado para trás. “Nós encorajávamos um ao outro quando estávamos prestes a cair, forçando-nos a permanecer com o grupo, para que não fossemos mortos.”
Quando eles finalmente chegaram a Buchenwald, Alemanha, foram salvos da morte por um membro da resistência comunista tcheca chamado Antonin Kalina, homenageado posteriormente por Israel por ter resgatado centenas de crianças judias.
Furst tinha 12 anos quando soldados americanos libertaram o campo. Ele é visto em uma das imagens mais icônicas do Holocausto, juntamente com outros sobreviventes, entre eles Elie Wiesel, vencedor do Nobel da Paz.
Furst lidera hoje um grupo de ex-prisioneiros de Buchenwald e disse à AFP que pretende falar sobre o que aconteceu com eles o máximo que puder, “para que as pessoas nunca esqueçam o que aconteceu. Temo que, em 50 ou 100 anos, o Holocausto se torne apenas mais uma página da História, e que esqueçamos o quão único e trágico ele foi.”
O sobrevivente estava em sua casa, em Haifa, norte de Israel, quando militantes do Hamas lançaram seu ataque de 7 de Outubro. Sua neta Mika e a família dela viviam em um kibutz a menos de três quilômetros da fronteira com a Faixa de Gaza e ele não conseguia contato com os parentes.
Mika, o marido e o filho de 2 anos esconderam-se por mais de 12 horas em seu abrigo enquanto o massacre acontecia. Mais de 60 vizinhos deles morreram e 19 foram sequestrados, e os pais do marido dela foram assassinados, queimados em casa.
Furst não compara o 7 de Outubro ao Holocausto. “É terrível, inimaginável, doloroso e não deveria ter acontecido, mas não é o Holocausto”, disse, temendo que “atrocidades semelhantes” possam acontecer.
Mirjam Bolle tem muito a dizer, embora insista em que não fez “nada de especial”. Como secretária do Conselho Judaico de Amsterdã, que os nazistas criaram para controlar a comunidade após a invasão, ela sabia tudo sobre a deportação de judeus holandeses.
Sua vez chegou em 1943, quando ela foi parar, aos 26 anos, no campo de concentração de Bergen Belsen, Alemanha. “Eles queriam nos matar de fome”, afirmou.
Mirjam e sua família foram “milagrosamente” libertadas com alguns outros em troca de prisioneiros de guerra alemães que estavam na Palestina controlada pelos britânicos em julho de 1944. Ela viajou de trem para “a terra de Israel”, onde vive até hoje, e onde se reuniu com o noivo, Leo, que havia emigrado antes da guerra, e com quem teve três filhos.
Durante seu tempo presa, Mirjam escreveu uma série de cartas para Leo, que nunca enviou. Elas foram publicadas em 2014, como “Letters Never Sent”, uma visão rara da vida judaica na capital holandesa durante a ocupação nazista. “Quis contar o que aconteceu para que não fosse esquecido”, disse a sobrevivente, que mantém a elegância de outrora aos 107 anos.
Mirjam se preocupa com o aumento do antissemitismo na Europa. “Acho que o futuro para os judeus que estão lá é incerto. Estou feliz por estar em Israel, porque é o lugar mais seguro para nós, mesmo com os problemas de agora”, disse ela, que é um dos sobreviventes do Holocausto mais velhos.
O trabalho salvou o sobrevivente de Auschwitz Dan Hadani, 100, nascido na Polônia. “Para escapar dos pesadelos e tentar esquecer, eu trabalhava dia e noite. Nunca parava. Eu estava tão cansado quando ia dormir, que eu nunca sonhava.”
O pai de Hadani morreu no gueto de Lodz antes de ele ser enviado com sua família para o campo de concentração, em 1944. Sua mãe foi morta assim que eles chegaram, e sua irmã foi assassinada quando os nazistas acabaram com o campo feminino, com a aproximação do Exército Vermelho.
Hadani quase foi escolhido para experimentos médicos por Josef Mengele, médico da SS, mas o despistou falando com ele em alemão. “Fique aí, seu cachorro”, respondeu Mengele.
Foi apenas mais tarde que o então jovem de 20 anos se deu conta de que poderia ter levado um tiro naquela hora. “Nunca vou esquecer aquele momento.”
Colocado para trabalhar em uma das fábricas do campo, Hadani sobreviveu às “marchas da morte” e foi libertado de Wobbelin, na Alemanha, por soldados americanos.
Quando voltou para a Polônia, soube que o restante de sua família havia morrido. Ele partiu para a Itália, antes de emigrar para Israel, logo após a criação do Estado, em junho de 1948.
Hadani começou a reconstruir sua vida e se tornou um oficial da Marinha, antes de fundar uma agência de fotografia, deixando 2 milhões de fotos que contam a história do jovem país para a sua biblioteca nacional.
Pequeno e barbudo, Hadani ainda tem uma energia notável. Ele exibe com orgulho sua carteira de motorista, antes de levar a equipe da AFP de carro para a sua residência, em Guivatayim, centro de Israel. Todas as quintas-feiras, ele se junta ao que chama de “parlamento” de ex-jornalistas e diplomatas, para um café.
Hadani, que nasceu Dunek Zloczewski, está convencido de que o testemunho dos milhares de sobreviventes vai ajudar a garantir que o Holocausto não seja apagado da História. O que o preocupa é o futuro de Israel, principalmente desde o 7 de Outubro, e alerta que o Holocausto “poderia se repetir. Homens são animais. É assim que vejo o mundo.”
Longos silêncios se seguem quando Abraham Wassertheil é perguntado sobre o que aconteceu com sua família durante a guerra. “Não sou muito falante”, diz esse sobrevivente, de 96 anos.
Expulso de casa quando tinha 11 anos, em 1937, Wassertheil sobreviveu a uma série de campos fingindo ser mais velho, antes de ser libertado de Allach, um subcampo de Dachau, na Alemanha, em 1945.
Diferentemente de seu amigo Dan Hadani, que conheceu em um campo de refugiados na Itália antes de eles se juntarem à Marinha de Israel, ele havia decidido não falar publicamente sobre o que aconteceu.
“Com a idade, percebi que você tem que falar. Nos campos, eu pensava apenas em uma coisa: comer e achar alguma coisa para comer”, descreveu, acrescentando que o mais importante foi ter contado a história de sua família para seus filhos.
Wassertheil também levou suas filhas com regularidade a Chrzanow, no sul da Polônia, de onde veio sua família. Dois anos atrás, a cidade abriu um parque em memória de sua população judaica perdida, que ganhou o nome da mãe do sobrevivente, Esther.
Para Wassertheil, o parque se tornou o túmulo que ela nunca teve. Ele não sabe quando ela foi morta em Auschwitz. Por um momento, a emoção toma conta do sobrevivente.
Apesar de ter perdido toda a família e de morar em uma parte do norte de Israel que está na linha de fogo do Hezbollah, Wassertheil insiste em que está em paz. “Minha vida chegará ao fim em breve. Não posso fazer nada para mudar as coisas, mas meus filhos têm boa saúde. Eles estão bem sem mim, e eu consigo me virar sem eles. Por isso, estou otimista.”
Eva Erben, 94, que cresceu em uma família judia abastada perto de Praga, tinha 11 anos quando foi levada com sua família para Theresienstadt, o “campo modelo” que os nazistas usavam em sua propaganda para fingir que os judeus estavam sendo bem tratados. Ela também fazia parte do grupo de crianças que cantavam a ópera “Brundibar” naquele local, que foi apresentada durante uma visita da Cruz Vermelha ao campo em 1944.
Eva cantou junto quando a AFP lhe mostrou um filme de uma de suas apresentações, e lembrou que todas as crianças e a equipe de filmagem foram enviadas para Auschwitz depois.
Eva e a mãe sobreviveram ao campo de extermínio, mas sua mãe morreu durante uma “marcha da morte” com os alemães em retirada. Eva foi deixada para trás enquanto dormia, e foi salva por alemães – “Eles não eram todos assassinos”, diz – e por alguns tchecos, que a esconderam até o fim da guerra.
A sobrevivente mostra com orgulho uma foto com os filhos e netos em sua casa em Ashkelon, sul de Israel, que tem um grande jardim e árvores plantadas por seu falecido marido.
“Não ignoramos o Holocausto. Passamos por ele e agora é hora de viver. Filhos, cantar, praticar esportes, viajar: uma vida normal, comendo e vivendo bem”, ressalta Eva, cuja história é contada em um livro sobre o Holocausto para crianças em idade escolar que foi traduzido para vários idiomas. Ela também apareceu em filmes e documentários.
Desde o 7 de Outubro, ela diz que a prioridade é “defender Israel”. Mais de 600 alertas de foguetes soaram em Ashkelon, que fica perto da Faixa de Gaza, desde o começo do conflito. Mas Eva se recusa a ir para um abrigo.
“Se Hitler não conseguiu me matar, eles também não conseguirão”, afirma a sobrevivente, sorrindo. Mas diz estar preocupada e “decepcionada com a forma como Israel é visto no mundo agora. Superamos o Holocausto, nós nos reconstruímos, tivemos filhos. Agora Israel precisa ser respeitado e aceito.”
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