No começo da pandemia, no dia 6 de fevereiro deste ano, Jair Bolsonaro sancionou a lei 13.979, que estabelece os parâmetros para enfrentar a emergência de saúde pública. Entre as medidas, além do isolamento e da quarentena, inclui-se a realização compulsória de diversos procedimentos, entre eles a vacinação, caso se entenda que isso é indispensável para cumprir o objetivo da lei: proteger a coletividade, segunda afirma o seu artigo primeiro.

É provável que Bolsonaro não tenha lido o que assinou. Em se tratando do presidente, não há por que desprezar essa opção.

Ou talvez ele tenha lido sem muita atenção, sem atinar com o fato de que vacinação compulsória não combina com certas teses que ajudaram a elegê-lo e que ele diz professar. São teses libertárias, ou melhor, de um libertarianismo rastaquera tirado das palestras de Olavo de Carvalho.

Seja como for, Bolsonaro resolveu se redimir nesta semana com seus seguidores. Redimir-se à sua moda, ou seja, causando confusão. Depois de dizer a uma eleitora que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, deixou que a Secretaria de Comunicação repetisse a mensagem em um post nas redes sociais, acrescentando que o governo “preza pelas liberdades dos brasileiros”.

Quem Bolsonaro pretendeu acalmar ou agradar com sua declaração? Há um indicativo em uma pesquisa recém-divulgada pelo instituto de pesquisas Ipsos. Ela foi realizada com 20 mil pessoas de 27 países, para identificar as reações a uma possível vacina contra o covid-19.

No Brasil, os números são os seguintes: 88% dos entrevistados estariam dispostos a receber a vacina (64% com alta convicção), e 12% tenderiam a não aceitá-la (4% com alta convicção).

Ou seja, o presidente se dirigiu a uma parcela reduzida da população. E tem mais.

O Ipsos também perguntou os motivos das pessoas que rejeitam a vacina: 63% disseram temer efeitos colaterais, 21% duvidam que ela será eficaz, 10% acreditam não estar em risco, 7% afirmam ser contra vacinas em geral, 2% alegam não ter tempo e 18% apontaram outras razões.

Desses grupos, o mais sensível ao argumento da “liberdade dos brasileiros” provavelmente é aquele contrário às vacinas por princípio. Supõe-se que não queiram ter sua individualidade profanada por uma agulha do Estado. Assim, o alvo mais certeiro da fala do presidente é uma minoria dentro da minoria: 7% de 12%.

Na verdade, a pesquisa só confirma algo que se pode intuir no dia-a-dia: a maioria dos brasileiros está mais preocupada com o prazo de aprovação de uma vacina e com a velocidade em que as doses serão distribuídas. Não existem as circunstâncias necessárias para que a imunização tenha de ser imposta aos cidadãos.

Bolsonaro poderia ter tratado a vacinação compulsória como um espantalho, um falso problema.

Melhor ainda:  para variar, poderia usar sua visibilidade para confortar e esclarecer, em vez de criar tensionamentos. Como mostra a pesquisa do Ipsos, entre as pessoas que não pretendem tomar a vacina há gente que pode ser convencida por bons argumentos: aqueles que temem efeitos colaterais, não acreditam que a vacina tenha efeito ou acham que não precisam de imunização. Uma palavra de razão do presidente poderia fazer diferença nesses grupos.

Infelizmente, o impulso de Bolsonaro para criar brigas ideológicas do nada é infalível. E de onde nada se espera, nada virá.

 

PS: O libertarianismo brasileiro é rastaquera porque não passa de verniz intelectual aplicado sobre a superfície tosca do bolsonarismo, que se anima de verdade com tiro, desmatamento, rachadinha e palavrão. O filósofo americano Jason Brennan, que é um libertário sério, já demonstrou que o respeito à liberdade individual não é incompatível com vacinação compulsória. Ele invoca o “princípio das mãos limpas”, segundo o qual todo indivíduo tem a obrigação de se abster de opções que, agregadas, causam danos. Uma pessoa que deixa de se vacinar parece ser irrelevante. Mas tomados em conjunto, os indivíduos que não se imunizam quando poderiam fazê-lo aumentam o risco de uma doença se espalhar e causar vítimas. Ao se omitir, eles “sujam as mãos”..