A pontar qual é o setor que mais perdeu com a pandemia é tarefa difícil, mas indiscutivelmente a área cultural está entre as mais afetadas. Praticamente tudo que diz respeito à arte depende de algum tipo de interação humana presencial: shows, exposições, peças de teatro – até a literatura foi prejudicada, se levarmos em conta as livrarias fechadas e os festivais literários cancelados. Quem passou o ano vendo lives transmitidas das casas dos famosos não imagina a quantidade de profissionais necessários para fazer girar a engrenagem desse universo no mundo real. Para cada artista conhecido, há uma multidão anônima de técnicos de som, carregadores, iluminadores, seguranças, roadies e produtores. Se 2020 será lembrado como o pior ano da história para o entretenimento, o que esperar de 2021? Há no ar uma espécie de “utopia dos palcos”, um sonho de que a vida “ao vivo” voltará a partir do segundo semestre – período no qual, em tese, a vacina já terá sido aplicada em boa parte da população. Otimismo exacerbado ou apenas um desejo de voltar à realidade pré-pandemia, quando éramos felizes e não sabíamos? Um pouco dos dois.

NA ESTRADA Dinho Ouro Preto, do Capital Inicial: bandas precisam das turnês como suporte para o lanç amento de novos álbuns (Crédito:Divulgação)

O maior festival do mundo, o “Rock in Rio”, está otimista com o controle da pandemia. Antes mesmo do início da vacinação na Europa, a organização anunciou as datas do evento em Lisboa, de 19 a 27 de junho, assim como a programação carioca, que vai de 24 de setembro a 3 de outubro. No Brasil já foram divulgadas até as bandas que dividirão o Palco Mundo na noite de estreia: o “Dia do Metal”, gênero mais popular do festival, terá Iron Maiden, Dream Theater, Megadeth, e os brasileiros do Sepultura, acompanhados da Orquestra Sinfônica Brasileira.
Do outro lado do espectro musical, o maior astro brasileiro da música eletrônica, Alok, também aposta que o mês de junho marcará a volta aos palcos – ou às pistas, em seu caso. “As festas estão retornando aos poucos. Já tive convites para tocar na China, mas ainda não me sinto confortável, prefiro esperar a situação estar mais estabilizada”, afirma. Acostumado a se apresentar para multidões, o DJ foi um dos que se reinventaram durante a pandemia. Apostou no universo dos games e se deu bem: lançou uma plataforma digital, organizou campeonatos e virou até personagem de “Free Fire”, um dos jogos mais vendidos do mundo. Entre os fãs, seu avatar faz sucesso graças ao super-poder de curar pessoas.

Outro que não vê a hora de cair na estrada é Dinho Ouro Preto, vocalista do Capital Inicial, uma das bandas que mais fazem – ou melhor, faziam – shows no País. Embora tenha organizado lives e pequenos eventos, Dinho acredita que a rotina de apresentações só deve voltar no segundo semestre, com a vacinação da população. “Estou sendo otimista”, diz. Para ele, o mercado fonográfico não sofreu tanto quanto o de turnês, uma vez que os músicos seguiram lançando material novo. “Sem os shows como suporte, porém, esses lançamentos ficam incompletos. É importante ir para a estrada divulgar uma obra, mas hoje estamos todos trancados em casa.” Dinho acha que a vacina trará uma espécie de catarse, uma ideia de carnaval fora de época. “Com a demanda represada, a volta do som ao vivo será uma festa generalizada, uma explosão de alegria e alívio.”

Paulo Baron, empresário e produtor internacional, acredita que o modelo atual de protocolos de segurança vai favorecer as bandas brasileiras e dificultar o retorno de nomes do exterior ao País. “Eventos com a metade da capacidade das casas podem voltar, mas festivais não vão vingar graças ao risco”, diz. “Com o valor atual do dólar e os altos impostos que o Brasil impõe sobre o showbiz, os únicos que podem se salvar, ainda que em baixa escala, são os artistas nacionais.”

A maioria das lives em 2020 foi feita de forma amadora, apenas como ferramenta para manter carreiras em evidência em tempos de cachês escassos. Algumas delas, porém, como a da cantora Billie Eilish e do compositor Nick Cave, inauguraram um novo modelo de negócios que deve ganhar força em 2021, mesmo com a vacina. São as megalives com produção caprichada e cobrança de ingressos, formato que permite, inclusive, que uma única apresentação seja vista por milhões de pessoas. Sem os custos de deslocamento e montagem dos palcos, esse sistema pode ser altamente lucrativo para as celebridades de fama global. No Brasil, muitos preferiram manter as lives gratuitas e rentabilizá-las por meio de patrocínios. Foi o caso das duplas sertanejas, que lucraram com as grandes marcas e ainda destinaram doações dos internautas às vítimas da pandemia.

DIGITAL Osesp na Sala São Paulo: concertos para poucos e transmissão ao vivo pela internet (Crédito:Divulgação)

Metaverso

Por mais sofisticadas que sejam suas produções, as lives atuais ainda estão restritas ao universo bidimensional das telas. Pode soar como ficção científica, mas já se discute o modelo de “metaverso”, ou seja, um ambiente híbrido de internet e realidade virtual. Essas experiências imersivas, apreciadas por meio de hologramas ou óculos de 3D de preços acessíveis, devem revolucionar a indústria cultural. A Disney anunciou a criação do “Disney Theme Park Metaverse”, cenário futurista que combina conteúdo e visitas simuladas a parques temáticos. Algo parecido já ocorre na área dos videogames, onde DJs e o público dividem o espaço por meio de personagens digitais – os avatares.

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Essa modernidade também chegou à música clássica. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, anunciou que seguirá o modelo híbrido de concertos na Sala São Paulo, ou seja, apresentações para poucas pessoas na plateia e transmissões pela internet. Segundo o diretor artístico, Arthur Nestrovski, a Osesp abusou da presença virtual em 2020. “Foram 15 concertos transmitidos ao vivo, além de 57 edições do programa “Osesp em Casa”, onde os músicos postaram vídeos caseiros. A orquestra disponibilizou ainda 37 arquivos de seu acervo e 11 episódios do ‘Música na Cabeça’, série de palestras com bate-papo e entrevistas”, afirma.

Um dos maiores complexos culturais do País, o Memorial da América Latina, prepara uma agenda híbrida parecia com a que vingou em 2020, com atividades online e presenciais, dentro dos protocolos de segurança. “Temos grandes eventos marcados, com os festivais Nomad, em abril, o Shimano Fest, em agosto, e o Coala, em setembro, em agosto”, afirma Jorge Damião, presidente do Memorial.

Ninguém torce mais pela volta aos palcos do que os profissionais que vivem de salários que dependem totalmente da vida na estrada. O roadie Ronaldo Davini, responsável por montar palcos e cuidar dos instrumentos de diversas bandas de rock em shows pelo País, passa por situação difícil. “A pandemia parou tudo. Quando a gente para de trabalhar, para de receber. Meu caixa ficou zerado e as contas continuaram a chegar. É complicado, temos famílias para sustentar, escola dos filhos, são vidas que estão em jogo”, afirma Ronaldo. “Precisamos com urgência dessa vacina.” Para todos os envolvidos na área da cultura, a atração mais aguardada de 2021 não estará nos palcos ou nos museus, mas nos postos de saúde.


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