23/12/2020 - 9:30
A pontar qual é o setor que mais perdeu com a pandemia é tarefa difícil, mas indiscutivelmente a área cultural está entre as mais afetadas. Praticamente tudo que diz respeito à arte depende de algum tipo de interação humana presencial: shows, exposições, peças de teatro – até a literatura foi prejudicada, se levarmos em conta as livrarias fechadas e os festivais literários cancelados. Quem passou o ano vendo lives transmitidas das casas dos famosos não imagina a quantidade de profissionais necessários para fazer girar a engrenagem desse universo no mundo real. Para cada artista conhecido, há uma multidão anônima de técnicos de som, carregadores, iluminadores, seguranças, roadies e produtores. Se 2020 será lembrado como o pior ano da história para o entretenimento, o que esperar de 2021? Há no ar uma espécie de “utopia dos palcos”, um sonho de que a vida “ao vivo” voltará a partir do segundo semestre – período no qual, em tese, a vacina já terá sido aplicada em boa parte da população. Otimismo exacerbado ou apenas um desejo de voltar à realidade pré-pandemia, quando éramos felizes e não sabíamos? Um pouco dos dois.
O maior festival do mundo, o “Rock in Rio”, está otimista com o controle da pandemia. Antes mesmo do início da vacinação na Europa, a organização anunciou as datas do evento em Lisboa, de 19 a 27 de junho, assim como a programação carioca, que vai de 24 de setembro a 3 de outubro. No Brasil já foram divulgadas até as bandas que dividirão o Palco Mundo na noite de estreia: o “Dia do Metal”, gênero mais popular do festival, terá Iron Maiden, Dream Theater, Megadeth, e os brasileiros do Sepultura, acompanhados da Orquestra Sinfônica Brasileira.
Do outro lado do espectro musical, o maior astro brasileiro da música eletrônica, Alok, também aposta que o mês de junho marcará a volta aos palcos – ou às pistas, em seu caso. “As festas estão retornando aos poucos. Já tive convites para tocar na China, mas ainda não me sinto confortável, prefiro esperar a situação estar mais estabilizada”, afirma. Acostumado a se apresentar para multidões, o DJ foi um dos que se reinventaram durante a pandemia. Apostou no universo dos games e se deu bem: lançou uma plataforma digital, organizou campeonatos e virou até personagem de “Free Fire”, um dos jogos mais vendidos do mundo. Entre os fãs, seu avatar faz sucesso graças ao super-poder de curar pessoas.
Outro que não vê a hora de cair na estrada é Dinho Ouro Preto, vocalista do Capital Inicial, uma das bandas que mais fazem – ou melhor, faziam – shows no País. Embora tenha organizado lives e pequenos eventos, Dinho acredita que a rotina de apresentações só deve voltar no segundo semestre, com a vacinação da população. “Estou sendo otimista”, diz. Para ele, o mercado fonográfico não sofreu tanto quanto o de turnês, uma vez que os músicos seguiram lançando material novo. “Sem os shows como suporte, porém, esses lançamentos ficam incompletos. É importante ir para a estrada divulgar uma obra, mas hoje estamos todos trancados em casa.” Dinho acha que a vacina trará uma espécie de catarse, uma ideia de carnaval fora de época. “Com a demanda represada, a volta do som ao vivo será uma festa generalizada, uma explosão de alegria e alívio.”
Paulo Baron, empresário e produtor internacional, acredita que o modelo atual de protocolos de segurança vai favorecer as bandas brasileiras e dificultar o retorno de nomes do exterior ao País. “Eventos com a metade da capacidade das casas podem voltar, mas festivais não vão vingar graças ao risco”, diz. “Com o valor atual do dólar e os altos impostos que o Brasil impõe sobre o showbiz, os únicos que podem se salvar, ainda que em baixa escala, são os artistas nacionais.”
A maioria das lives em 2020 foi feita de forma amadora, apenas como ferramenta para manter carreiras em evidência em tempos de cachês escassos. Algumas delas, porém, como a da cantora Billie Eilish e do compositor Nick Cave, inauguraram um novo modelo de negócios que deve ganhar força em 2021, mesmo com a vacina. São as megalives com produção caprichada e cobrança de ingressos, formato que permite, inclusive, que uma única apresentação seja vista por milhões de pessoas. Sem os custos de deslocamento e montagem dos palcos, esse sistema pode ser altamente lucrativo para as celebridades de fama global. No Brasil, muitos preferiram manter as lives gratuitas e rentabilizá-las por meio de patrocínios. Foi o caso das duplas sertanejas, que lucraram com as grandes marcas e ainda destinaram doações dos internautas às vítimas da pandemia.
Metaverso
Por mais sofisticadas que sejam suas produções, as lives atuais ainda estão restritas ao universo bidimensional das telas. Pode soar como ficção científica, mas já se discute o modelo de “metaverso”, ou seja, um ambiente híbrido de internet e realidade virtual. Essas experiências imersivas, apreciadas por meio de hologramas ou óculos de 3D de preços acessíveis, devem revolucionar a indústria cultural. A Disney anunciou a criação do “Disney Theme Park Metaverse”, cenário futurista que combina conteúdo e visitas simuladas a parques temáticos. Algo parecido já ocorre na área dos videogames, onde DJs e o público dividem o espaço por meio de personagens digitais – os avatares.
Essa modernidade também chegou à música clássica. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, anunciou que seguirá o modelo híbrido de concertos na Sala São Paulo, ou seja, apresentações para poucas pessoas na plateia e transmissões pela internet. Segundo o diretor artístico, Arthur Nestrovski, a Osesp abusou da presença virtual em 2020. “Foram 15 concertos transmitidos ao vivo, além de 57 edições do programa “Osesp em Casa”, onde os músicos postaram vídeos caseiros. A orquestra disponibilizou ainda 37 arquivos de seu acervo e 11 episódios do ‘Música na Cabeça’, série de palestras com bate-papo e entrevistas”, afirma.
Um dos maiores complexos culturais do País, o Memorial da América Latina, prepara uma agenda híbrida parecia com a que vingou em 2020, com atividades online e presenciais, dentro dos protocolos de segurança. “Temos grandes eventos marcados, com os festivais Nomad, em abril, o Shimano Fest, em agosto, e o Coala, em setembro, em agosto”, afirma Jorge Damião, presidente do Memorial.
Ninguém torce mais pela volta aos palcos do que os profissionais que vivem de salários que dependem totalmente da vida na estrada. O roadie Ronaldo Davini, responsável por montar palcos e cuidar dos instrumentos de diversas bandas de rock em shows pelo País, passa por situação difícil. “A pandemia parou tudo. Quando a gente para de trabalhar, para de receber. Meu caixa ficou zerado e as contas continuaram a chegar. É complicado, temos famílias para sustentar, escola dos filhos, são vidas que estão em jogo”, afirma Ronaldo. “Precisamos com urgência dessa vacina.” Para todos os envolvidos na área da cultura, a atração mais aguardada de 2021 não estará nos palcos ou nos museus, mas nos postos de saúde.