Filho de argelino com mãe carioca, o professor de Relações Internacionais Tanguy Baghdadi ganhou a cena entre os jovens brasileiros ao explicar a invasão da Ucrânia pela Rússia de uma maneira simples e didática. Apesar de passar por instituições como Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Ibmec, é através do podcast “Petit Journal”, realizado em parceria com o economista Daniel Sousa, que Tanguy, como é conhecido pelos alunos, atrai milhares de ouvintes. Para ele, que logo aos 22 anos começou a dar aulas em cursos preparatórios para o concurso de admissão à carreira diplomática, falar sobre geopolítica aos 37 é como “contar uma boa fofoca”. Apesar do talento para transmitir conhecimento, o professor vê a situação dos refugiados com preocupação e seriedade. “Em menos de vinte dias, quase três milhões de pessoas saíram da Ucrânia. É uma catástrofe”, diz. No campo doméstico, aponta como a nova direita faz malabarismos ideológicos para defender Vladimir Putin e fala sobre a voz enfraquecida e repleta de cacofonia do Brasil no cenário internacional.

É possível prever um desfecho para a guerra na Ucrânia?
Não tem conclusão fácil porque enquanto Vladimir Putin precisa terminar a invasão o mais rápido possível, o jogo da Ucrânia é, de certa forma, estendê-lo ao máximo. A Ucrânia precisa que a Rússia sofra e quanto mais rigorosas forem as sanções contra os russos, melhor. Quanto mais demorar para os russos invadirem o país, mais sobra tempo para que a Ucrânia seja socorrida. Se a Rússia simplesmente recuar agora, ela se tornará a grande perdedora. Ou seja, a guerra pode durar mais duas semanas, com os dois países resolvendo a disputa em uma mesa de negociação, ou podemos ver a Ucrânia totalmente derrotada. Outra possibilidade é a Rússia passar anos tentando ocupar militarmente a Ucrânia, lutando contra guerrilhas ucranianas, por exemplo.

Ou seja, podemos ter uma segunda Síria?
Na Síria, Assad venceu a guerra porque não foi deposto, mas isso não significa o fim da violência. Você continua tendo rebeldes no norte da Síria e atritos com os Curdos, por exemplo. Mas qual a grande diferença entre Síria e Ucrânia? A Síria não fica na Europa. Já o conflito na Ucrânia envolve diretamente a OTAN e o questionamento: somos capazes de conter a Rússia? Ela pode fazer o que bem entender?

O medo de uma Terceira Guerra Mundial nunca foi tão real. Vamos chegar nesse momento?
A terceira guerra mundial será a última guerra da humanidade. Se ela acontecer, provavelmente, será uma guerra nuclear. Mas, se formos pensar do ponto de vista econômico, a Rússia já está sofrendo um grande revés. O mundo passou o século XX tentando evitar esse embate entre Rússia, então União Soviética, e os países da OTAN, e o que estamos vendo hoje em relação às sanções nunca aconteceu antes. A URSS nunca ficou tão isolada como a Rússia está hoje. Em termos mais amplos, além do militar, uma guerra de informação e uma guerra econômica e comercial já estão acontecendo. Mas repito, não acredito em um conflito militar entre a OTAN e a Rússia.

Há uma saída honrosa para Vladimir Putin, que não deve aceitar uma rendição, ou ele partirá para uma guerra total?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Vivemos num momento único da história, não há paralelo que se consiga fazer com os acontecimentos do passado. Putin já tinha pintado e bordado na Geórgia, depois tomou a Crimeia e as consequências eram relativamente pequenas. Ele continuava a ser recebido em outros países, encontrou Biden, tinha aceitação internacional. Agora há um sentimento de ojeriza a Putin, que não havia com tanta intensidade no passado. De não ter mais empresa de cartão de crédito, de hotelaria, de marcas internacionais como McDonalds e Pizza Hut. O isolamento chegou até ao petróleo e, no momento em que isso aconteceu, o conflito escalou para um patamar inimaginável. Putin pode até ir para a mesa de negociação, mas de forma que saia vitorioso. E mesmo que isso aconteça, não consigo ver a Rússia sendo reabilitada no plano internacional em curto prazo.

Existe a possibilidade de Putin ser deposto?
No momento, não. Mesmo com as sanções aos oligarcas, às redes sociais e à cultura russa, o presidente ainda controla todos os aspectos da vida no país. Putin é muito poderoso e, mais importante, é um líder totalmente popular, algo que no Ocidente temos bastante dificuldade de vislumbrar. Os russos olham para ele como alguém que foi capaz de devolver a grandeza da Rússia: a grandeza da Rússia czarista ou da União Soviética.

Esse sucesso interno de Putin seria o que Bolsonaro e o ex-presidente Donald Trump tanto almejam?
Existe uma grande admiração pelo estilo de poder que o Putin exerce. Fica bastante claro, por exemplo, ao ver a relação de amor e ódio que o ex-presidente Donald Trump tinha pelo presidente russo. Havia um respeito enorme, um tom de elogio por alguém que conseguia conduzir seu país da maneira correta. E com Bolsonaro é a mesma coisa. Bolsonaro deve ter ficado honrado com o elogio que Putin fez a ele, de que ele teria as “melhores qualidades masculinas”. Isso faz parte de uma estética de poder que agrada muito a essa nova direita global. A nova direita vê em Putin alguém que valoriza o lado tradicional da nação, que fala da religião, dos valores nacionais, que tem uma postura conservadora, imperialista, um sentimento de “ninguém vai passar a gente para trás”.

Qual o efeito da frase do presidente Jair Bolsonaro ao se dizer “solidário” à Rússia?
A política externa brasileira está passando por um momento curioso por causa de certa cacofonia. São duas vozes diferentes: a do presidente e a do Itamaraty. Elas geralmente andam juntas porque quem escolhe o ministro das Relações Exteriores é o presidente e você coloca ali um chanceler que tenha uma voz parecida com a sua. Agora, ao mesmo tempo em que temos um Itamaraty defendendo a posição do Brasil na ONU, dizendo que o uso da força é condenável, temos um presidente falando em solidariedade com o agressor. Em todo o lugar que o Brasil é chamado a opinar, do ponto de vista diplomático, a posição é essa, de condenar a violência. Por isso impressiona o descompasso das duas posições. Quando o presidente fala isso, de solidariedade, ele faz isso ao lado do presidente Putin ou em lives para os seus apoiadores.

Essa seria a razão de Bolsonaro ter sido deixado de escanteio pelos Estados Unidos depois de Trump?
A posição do presidente é pessoal. Bolsonaro nutre uma admiração por Putin, mas também tem o eleitorado doméstico, a base de apoio dele, que não faz a menor ideia de quem seja Volodymyr Zelensky. Há essa ideia de que a Ucrânia está muito alinhada aos tais valores globalistas da União Europeia, um antro de regras do politicamente correto, enquanto que a Rússia estaria se contrapondo a isso. Essa visão que Bolsonaro tem é compartilhada por muita gente dessa ala da nova direita.

Do ponto de vista ideológico, há diversos termos que se misturam no conflito. Como a direita lida com essas inconsistências entre democracia e comunismo?
A nova direita brasileira não preza pela coerência do ponto de vista ideológico. As posições ideológicas são de ocasião. Até outro dia esse mesmo extrato político considerava que o presidente Bolsonaro estava fazendo um excelente trabalho ao se aproximar dos Estados Unidos, como uma grande referência cultural e econômica da política para o Brasil. Quando muda o presidente, há a possibilidade de você também mudar o discurso e colocar os EUA como um país globalista, governado por Biden, um presidente praticamente socialista. E a esquerda também está perdida em quem defende, não é exclusivo da direita.

O argumento de Putin de combater o neonazismo na Ucrânia procede?
Embora não façam parte do governo e não tenham uma relação palaciana, a Ucrânia é um dos países que possui o maior número de grupos neonazistas organizados na Europa. Porém, o que o Putin faz é uma relação entre o nacionalismo ucraniano, que de fato existe, com o movimento neonazista. Ou seja, qualquer postura anti-Rússia é automaticamente neonazista.

Qual é o papel da Europa nesse momento?
A Europa ficou como coadjuvante. Se você for pensar nos três líderes de maior destaque, como Macron, que provavelmente vai passar por uma eleição muito difícil agora em abril, Olaf Scholz, que está com o problema gravíssimo de substituir a Merkel, que sabia lidar com Putin, e Boris Johnson, que está perdido, tentando se manter mais uma semana no poder, vemos uma entressafra de lideranças. Vimos Macron e Scholz irem até Putin para conversar e tentar um cessar fogo com hesitação e sem firmeza. A Alemanha mesmo demorou para decidir se iria bater de frente com a Rússia, por exemplo.

Como o conflito da Ucrânia influencia diretamente a população brasileira?
A tendência econômica mundial é de inflação, algo que já está acontecendo e que deve piorar. Quando o combustível aumenta, tudo na cadeia de produção se torna mais caro. Mas também há uma perda de influência muito grande já que a Rússia era um país muito importante para o Brasil no sistema de inserção internacional. Como um dos atores centrais dos Brics, o fato de a Rússia estar desabilitada neste nível, enfraquece a posição dos países periféricos de uma forma geral. Esses países que vinham nos últimos 20 anos contestando a ordem vigente, dizendo que era preciso ter um espaço maior de discussão, algo que fosse além do G7. Então a posição brasileira fica enfraquecida porque o multinacionalismo é a única posição que interessa ao País. Se o papel da diplomacia perde força, o Brasil perde força também.

A onda de refugiados do conflito surpreende, foram 3 milhões de pessoas fugindo da Ucrânia em apenas 20 dias de conflito, qual o impacto dessa movimentação?
É muita gente, ainda mais quando se leva em consideração que é um país com 44 milhões de pessoas. Daqui a pouco serão 10% da população fugindo da zona de conflito. É uma catástrofe em termos humanos, fora a angústia de perceber que quando o refugiado é sírio ou afegão, temos uma “crise humanitária que coloca os valores europeus em risco”, algo que não acontece com os ucranianos. A questão não é “os refugiados ucranianos não devem ser recebidos, mas sim a de que todos os refugiados sejam recebidos. O topo da dimensão humana desse conflito, infelizmente, ainda está longe de ser alcançado, algo que sem dúvida irá impactar no nível de resistência que Vladimir Putin irá enfrentar no futuro.