Se não fosse ele, na minha vida nunca teriam existido colunas, nem mídias, nem revistas, nem jornais. Este texto é uma homenagem à amizade. E um silêncio. E um adeus. Há momentos na nossa vida em que tudo muda. Na minha, isso aconteceu quando conheci o radialista e historiador João José Cardoso. Estávamos em Coimbra no final dos anos 1980 e a minha juventude acabava de se tornar universitária. Cheguei para estudar Engenharia Mecânica, na senda de tornar real uma profissão que as desigualdades do Estado Novo Português tinham roubado ao meu pai; e cumprir uma vaidade da minha mãe: ter um filho doutor na Universidade de Coimbra. Coimbra era, naquele tempo, um lugar mágico. Talvez todas as cidades universitárias fossem belas, porque então éramos jovens e tudo era mais belo. Muitos anos depois, frente a uma página de papel, cabe-me agora recordar aquela tarde remota (onde é que eu já li isso) quando, num dia de outono como este, o João me levou a conhecer a Rádio universitária. Foi nesse dia que a minha vida se transformou para sempre.

O promitente engenheiro dava folga às sebentas da mecânica, da física e da álgebra e abraçava sem limite as ondas sonoras da rádio. Lá dentro havia livros de poesia, romances de aventuras e lições de camaradagem. Foi na colmeia louca da Rádio Universidade de Coimbra que conheci o João. E foi por causa dele que não dediquei a minha vida a estudar foguetes, caixas de velocidade ou permutadores de calor.

Há momentos na nossa vida em que tudo muda. No meu caso, isso aconteceu quando conheci o radialista João José Cardoso

O João foi o meu “pai” radiofônico e muito depressa se haveria de tornar um dos meus companheiros de vida. Agitado a defender ideais impossíveis. Nervoso na composição miúda dos argumentos com que enchia doces e intermináveis conversas sem objetivo aparente. Sempre sereno na forma como se entregava aos prazeres da amizade. Vendia aulas e colecionava sonhos. Estudava os assuntos de que gostava com a minúcia dos historiadores à procura dos detalhes que ninguém mais via. Encenava os “outros tempos” como se fosse mesmo possível viver neles. E eu acreditava. Falei com ele na véspera da sua morte. Sabia que era difícil a luta que dava à doença, mas não antecipava uma derrota tão repentina. E a página do facebook que o mostrava jovem dava-me esperança. Mas era vã. E hoje estou cheio de lágrimas porque o João partiu. Ele não acreditava em Deus e por isso sei que nunca mais o vou encontrar fora destas memórias. Culpo-me por não ter encontrado tempo na voragem do trabalho para lhe ter dito que a maior parte das minhas memórias de juventude eram dele. Que gostava muito de ele ter sido o “meu agente transformador”. Quando os amigos morrem ficamos mais perto da morte. Mas também ficamos mais perto do céu.