VÁRIAS FRENTES O corregedor-geral, Luis Felipe Salomão, liderou o cerco a Bolsonaro no TSE (Crédito:GUSTAVO LIMA)

A redemocratização foi marcada nos últimos 35 anos por duras provas de fogo, com o impeachment de dois presidentes. Apesar dos percalços, a força da Constituição de 1988 se provou efetiva. Mas o maior teste ainda está em curso, causado por um presidente que defende abertamente um golpe e ataca quase diariamente as instituições. O presidente da Câmara e o procurador-geral da República, que conseguiram seus cargos pela ação ostensiva do presidente, têm falhado até o momento em conter esse ímpeto. Com a omissão, a reação coube ao Judiciário.

Num movimento coordenado, ministros das cortes superiores agiram com uma série de ações para conter as ameaças às eleições de 2022. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) abriu por unanimidade na segunda-feira, 2, um inquérito administrativo para investigar os ataques ao sistema eleitoral, enquanto o corregedor-geral da corte, Luis Felipe Salomão, pediu a inclusão do próprio presidente no inquérito das Fake News em curso no Supremo Tribunal Federal (STF). No mesmo dia, todos os ministros que presidiram o TSE desde 1988, inclusive nove dos atuais ministros do STF, assinaram um documento em defesa da urna eletrônica. Foi um gesto histórico de união do Judiciário. Dois dias depois, o corregedor-geral do TSE pediu que as apurações do inquérito dos Atos Antidemocráticos sejam incorporadas às investigações sobre ações ilegais da chapa Bolsonaro-Mourão. Essas medidas mudam o jogo institucional.

GOL CONTRA Em live no dia 29, o presidente reconheceu não ter provas contra urnas (Crédito:Divulgação)

A reação do judiciário teve início após a live semanal do presidente no dia 29. Depois de anunciar por um mês que faria uma “grande denúncia”, o presidente mobilizou órgãos de imprensa e o aparato de comunicação oficial para divulgar provas de fraude com urnas eletrônicas. Voltou a fazer ataques ao sistema eleitoral e exibiu diversos vídeos amadores, sem qualquer evidência técnica. Ao mesmo tempo, milícias digitais inundaram as redes sociais com ataques coordenados, em boa medida impulsionados por robôs. O circo transcorreu mesmo com o presidente tendo admitido ao vivo que não tinha provas (na terça-feira, 3, confirmou ao TSE que não tinha nenhuma evidência). Foi um traque. E, para os ministros, a gota d’água. A Corte resolveu dar um basta.

Desde junho, os ministros do STF estavam coordenando uma reação, tendo à frente o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, e o ministro Alexandre de Moraes. No fim de semana, eles combinaram preparar uma resposta dura e coordenada. Coube a Barroso, que faria o discurso de reabertura do TSE, dar o tom. Preparou um discurso em tópicos, criticando “a ameaça à realização de eleições, a desinformação, as mentiras, o ódio e as teorias conspiratórias”. Foi uma intervenção forte, feita de improviso. Barroso também passou o fim de semana preparando uma notícia-crime pedindo a inclusão de Bolsonaro no inquérito das Fake News (Alexandre de Moraes acolheu o pedido na quinta-feira). Antes de apresentar sua proposta no plenário do TSE, participou de uma reunião com todos os ministros e conseguiu o apoio unânime.

O procurador-geral, Augusto Aras, não encaminhou representação por crime eleitoral contra o presidente. Antes neutro, Arthur Lira ensaiou crítica à Justiça Eleitoral (Crédito:Pedro Ladeira/Sergio Lima)

O presidente do STF, Luiz Fux, que iria conduzir a cerimônia de abertura da corte na própria segunda, também preparou um discurso forte, mas depois o amenizou. Resolveu adotar uma atitude mais institucional. Não quis ver o “circo pegar fogo”, como se comentou nos bastidores do Supremo. Apesar de não desejar uma ruptura, também deu sinais de que não será condescendente com Bolsonaro, fazendo uma intervenção que defendeu enfaticamente a democracia. Mas essa atitude mais conciliadora está sendo colocada à prova. Os próprios assessores de Fux estão pedindo para o ministro abandonar a estratégia de se reunir com os chefes do Executivo e do Legislativo para “melhorar a relação”, um encontro que foi adiado depois que o presidente se internou no dia 14. Segundo essa avaliação, a conciliação pode apenas dar mais combustível para novas investidas antidemocráticas.

No início da semana, o próprio presidente adotou essa tática, ao limitar as rusgas a um problema pessoal com Barroso, a quem já chamou de “idiota” e “péssimo ministro”. Há razões para a irritação. Afinal, o ministro do STF abriu o caminho para a instalação da CPI da Covid, que escancarou um esquema de desvios no Ministério da Saúde e enterrou de vez a imagem anticorrupção do governo Bolsonaro. Além disso, Barroso defende posições progressistas, como a descriminalização do aborto e das drogas, que se chocam com a pauta conservadora bolsonarista. Mas não há nenhuma base para o presidente apontar uma suposta “conspiração” do ministro em favor de Lula no pleito de 2022, já que Barroso votou pela manutenção da prisão do ex-presidente e a favor da prisão após condenação em segunda instância. O problema do mandatário não é Barroso, evidentemente. Ele precisa mobilizar sua base radical e, principalmente, preparar o levante contra as eleições que devem ser desfavoráveis a ele no próximo ano. Mesmo que para isso precise atacar de forma patética a tecnologia das urnas eletrônicas, que foi desenvolvida por militares brasileiros, é reconhecida internacionalmente e pôs fim ao voto de cabresto.

Ministros perdem a paciência

Não há nenhuma dúvida razoável sobre a lisura do sistema eleitoral. Ele está sendo atacado exatamente por suas virtudes, por impedir manipulações. Todos os ex-presidentes do TSE acham que é um processo seguro. Barroso procurou pessoalmente o apoio de todos para a declaração conjunta, e não teve dificuldade em convencê-los. Um deles é o ex-ministro Carlos Ayres Britto, para quem o “Judiciário passou um risco no chão” pra mostrar os limites que o Bolsonaro tem que respeitar. “Isso tudo se trata, basicamente, de respeitar a Justiça Eleitoral. O Judiciário não quer usurpar a função de ninguém. Mas não quer que ninguém usurpe a sua função. Porque é a Justiça Eleitoral que entende de eleição. A resposta do Judiciário mostrou isso”, afirmou. É voz corrente no STF que praticamente todos os ministros perderam a paciência com Bolsonaro. As respostas serão dadas judicialmente. A ofensiva teve como única nota dissonante: o ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro. Ele ficou totalmente isolado. Não foi procurado para assinar a resposta conjunta do TSE por não ser ex-membro da Corte, e mostrou fidelidade ao mandatário dizendo que o voto impresso é “uma preocupação legítima do povo”.

É necessário agora acompanhar a eficácia das medidas adotadas. No âmbito do TSE, o inquérito administrativo que vai apurar abuso do poder econômico e político, corrupção, fraude, condutas vedadas a agentes públicos e propaganda extemporânea, entre outros crimes, não pode levar a punições concretas ao presidente, mas pode embasar pedidos para que sua chapa à reeleição seja impugnada. Isso é uma ameaça concreta para a candidatura Bolsonaro, apesar do risco de o presidente usar a penalidade para se vitimizar — pode mesmo estar contando com isso. Esse processo sugerido pelo corregedor-geral é inédito no TSE. Não se sabe ainda quais medidas serão tomadas, mas as primeiras devem ser o agendamento de depoimentos.

No inquérito das Fake News, o presidente passou a ser investigado por 11 crimes: 7 previstos no Código Penal, 3 na Lei de Segurança Nacional e 1 no Código Eleitoral.

O ministro Alexandre de Moraes deu dez dias para que a PF interrogue, na condição de testemunha, cinco pessoas envolvidas na live do dia 29. O próprio ministro da Justiça, Anderson Torres, que participou da transmissão e tem a corporação sob seu guarda-chuva, é um dos nomes listados. A ministra Cármen Lúcia classificou como “grave” a utilização da TV Brasil para difundir o evento, e enviou à PGR uma notícia-crime por suspeita de crime eleitoral. Mas, ao final, todas essas diligências têm uma função de constrangimento. Os ministros sabem que uma eventual punição depende de uma denúncia da PGR — o que eles sabem que não vai acontecer com o atual procurador-geral. Já as ações que correm no TSE em relação às eleições de 2018 podem cassar a chapa Bolsonaro-Mourão. Pouco provável, mas possível. As investigações sobre os disparos de mensagens em massa ilegais na campanha já contam com as diligências do inquérito das Fake News. Salomão pediu ainda que as apurações do inquérito que sucedeu a investigação sobre atos antidemocráticos também sejam compartilhadas. E, para completar o cerco judicial, a PF encaminhou um pedido ao STF para que sejam compartilhadas provas da CPMI das Fake News com essa última investigação.

São ações atípicas, mas vitais. Essa mobilização não seria necessária se os ataques à democracia não contassem com a complacência do presidente da Câmara, Arthur Lira, e do procurador-geral, Augusto Aras. Lira se nega a dar andamento aos 130 pedidos de impeachment já protocolados, apesar dos crimes de responsabilidade em série cometidos pelo presidente. Até o momento ele se mantinha neutro nos ataques bolsonaristas pela volta do voto impresso. Seu partido, o PP, inclusive tinha participado da manobra para enterrar o projeto. Mas, por pressão do presidente, na quarta-feira, em pleno dia e posse de Ciro Nogueira (também do PP) como ministro da Casa Civil, Lira ensaiou um alinhamento com o presidente. “Não se pode aceitar que a Justiça Eleitoral legisle”, afirmou.

Papel ainda menos independente demonstrou Aras. Antes da reação do TSE, o procurador-geral já tinha sobre sua mesa uma representação contra o presidente por crime eleitoral assinada por seis subprocuradores. “É verdade que Aras, até agora, jogou junto com Bolsonaro. Mas as coisas podem mudar. Depende da sabatina no Senado para ser reconduzido ao cargo. Pode ser que alguns senadores cobrem uma postura mais dura dele contra o presidente para que receba os votos”, disse à ISTOÉ um importante subprocurador. Na PGR, há desconforto entre os subprocuradores. Não há outra via jurídica para punir Bolsonaro, segundo esse subprocurador. “A representação é para quem tem atribuição, não há outro caminho, salvo se a legislação prever legitimados, como partidos políticos. Eles podem entrar com ações constitucionais no STF e ações eleitorais no TSE.”

A ação dos ministros do TSE e do STF foi certeira, e comemorada. Para Pierpaolo Bottini, professor de direito penal da USP, “foi correto aumentar o tom. Não se pode deixar alguém questionar o sistema eleitoral assim. Não há problema em defender o mérito do voto impresso. O que não pode é colocar em risco a estabilidade institucional se as coisas não saírem da forma como você quer”. A Comissão Especial encarregada de analisar a PEC do voto impresso tinha reunião agendada na última quinta-feira e poderia descartar definitivamente a proposta. O relator da medida ainda tentou um movimento de última hora, apresentando uma nova versão do texto que enfraquece a atuação do TSE na investigação de irregularidades e permite mudanças nas urnas até a véspera do pleito.

Se Bolsonaro não mudar o tom, a resposta será dada pela agilização dos processos que o cercam. Ministros estão dispostos a radicalizar

Atualmente a Constituição prevê que as regras sejam estabelecidas até um ano antes do pleito, para garantir previsibilidade e segurança — exatamente o que o presidente não deseja. Até a eventual derrubada na comissão desse projeto não significa que o mandatário vai recuar em sua estratégia de deslegitimar as eleições. Essa cruzada anacrônica pelo voto de papel é apenas mais um lance em sua escalada autoritária. A estratégia é usar os instrumentos da a democracia para matá-la por dentro. Por isso, o presidente testa os limites das instituições o tempo todo. Com a sua nova condição de investigado, já ameaçou usar um “antídoto fora das 4 linhas da Constituição”. É apenas o reconhecimento do que tem planejado desde o início, provocar um putsch cercado de militares. Daí a necessidade de contenção imediata, antes que essa ameaça se concretize. Um ministro do STF disse a interlocutores que “ninguém acredita que Bolsonaro dará um golpe”. Mas a Corte sinaliza que não vai ser apenas espectadora dos acontecimentos.

COORDENADOS Manifestação no dia 1º foi estimulada pela live do dia 29 e ocorreu em São Paulo e outras capitais: críticas às urnas eletrônicas e apoio ao presidente (Crédito:CRISTINA SZUCINSKI)

Nos bastidores do STF, o que se diz é que os ministros “estão com sangue nos olhos”. Se Bolsonaro não mudar o tom a partir de agora, a resposta será dada pela agilização dos processos que o cercam. A grande maioria dos ministros das duas instâncias judiciais está disposta a radicalizar. Num sinal de fortalecimento, vários advogados já procuraram o tribunal apoiando a iniciativa e 250 empresários, intelectuais e representantes da sociedade civil divulgaram uma carta pedido respeito às próximas eleições. A interlocutores, o ministro Barroso deu o tom da resposta que se pode esperar. Ele disse que “fez a coisa certa e o que tinha que ser feito”. É o que a sociedade espera.