Há um ditado na vida política de países escaldados em ditaduras como o nosso: “quando se sabe de cor o nome dos ministros do Supremo Tribunal Federal é porque a democracia está em risco”. No Brasil, atualmente, a maioria da população tem na ponta da língua como se chamam os magistrados, mas deixe-se claro, de imediato, que não são eles a ameaça à ordem democrática — ao contrário, estão lutando feito leões togados para mantê-la. O perigo vem do presidente Jair Bolsonaro. Dia sim, outro também, ele investe contra o Poder Judiciário, e, recentemente, o seu ataque verbal de fúria foi tanto que, na segunda-feira 12, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, o chamou para uma reunião — curta em seus vinte minutos de duração, mas longa para Bolsonaro em seus vinte minutos de sermão. Fux enquadrou o presidente, e fez-lhe ver que há uma Constituição e um Código Penal que devem ser respeitados. Mais: ditou-lhe a lição de que é preciso construir ”sólidas balizas para a garantia da democracia e da estabilidade de nosso regime político”. Para isso, Fux marcara uma reunião com os chefes dos Três Poderes, cancelada na quarta-feira 14 porque Bolsonaro teve de ser internado no Hospital das Forças Armadas devido a uma crise de soluços e dores abdominais, segundo o Planalto.

Após a reunião com o presidente, Fux declarou: “debatemos quão importante para a democracia é o respeito às instituições”. No encontro, segundo ele, o mandatário “puxou um momento evangélico e rezou um Pai-Nosso”. Bolsonaro, que se inflou nos últimos dias, saiu murcho. “Estamos perfeitamente alinhados”, disse ele. Vale indagar se Fux acredita na anuência do capitão. Pode ser que sim, pode ser que não. E Bolsonaro acredita naquilo com que ele próprio falou que concordou? Com certeza não, dissociais não aprendem com a experiência. Ele amansou, pelo menos no momento, porque percebeu que existe previsão de cadeia para seus atos; amansou porque está desnorteado com o despencar nas pesquisas de intenção de voto e de aprovação de seu governo; amansou devido às mobilizações de rua em favor do impeachment e porque a CPI está chegando a crimes comuns e de responsabilidade por ele cometidos. Ainda assim, na saída do STF, em uma fala despicienda, declarou que existe um magistrado a praticar “ativismo legislativo”. O destinatário da mentira é Luís Roberto Barroso, o mesmo que se tornara o principal alvo da cólera presidencial — Barroso foi a vítima porque, além de membro do STF, é presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

“TERRIVELMENTE EVANGÉLICO” Mendonça: será preciso lembrá-lo que o Estado é laico (Crédito: Ueslei Marcelino)

Fora da história

Desde a quinta-feira 8 o Messias vinha atirando. Primeiro, feriu a Constituição, o Estado de Direito e o sistema de checks and balances (freios e contrapesos, teoria consolidada por Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieue, em “O Espírito das Leis”). “Ou há eleições limpas ou não há eleições no ano que vem”, afirmou Bolsonaro. Traduzindo: ou há voto impresso, como ele quer, ou a votação será proibida. Depois, o capitão chamou Barroso de “idiota” e “imbecil”. Na sequência, cometeu grave crime de calúnia, injúria e difamação ao insinuar que Barroso absolvera um acusado de pedofilia porque estaria envolvido em tal prática criminosa. Grave mentira.

Barroso não absolveu nenhum pedófilo. As reações, de alguns colegas, foram imediatas. Além do próprio caluniado, os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Alexandre de Moraes protestaram contra o ataque às instituições e a ofensa pessoal. Gilmar, genialmente, ironizou: “entendo que isso é tão consistente quanto a mensagem que diz que o homem não foi à lua”. Alexandre de Moareas lavou a alma de todos os cidadãos democratas: “os brasileiros podem confiar nas instituições, na certeza de que, soberanamente, escolherão seus dirigentes nas eleições de 2022, com liberdade e sigilo de voto”. É ele quem estará na Presidência do TSE nas eleições.

Desgastar os demais poderes (Bolsonaro pede o fechamento do Supremo desde a posse) e aparelhá-los faz parte da cartilha autoritária do neopopulismo. Na área específica do STF, ele conseguiu um assento a Kassio Nunes Marques, na vaga de Celso de Mello: o neófito, em oito meses, deu-lhe vinte decisões favoráveis. Na semana passada, confirmou-se a outra indicação: a do “terrivelmente evangélico”, André Mendonça, ex-AGU, para a vaga de Marco Aurélio Mello.

É possível avaliar o conceito que esses magistrados têm da própria Corte, que integram ou integrarão, atuando feito vassalos de Bolsonaro quando nela desembarcam. Isso é possível de ser corrigido, mas é preciso que o Senado, ao sabatinar o indicado, de fato busque no candidato o notório saber jurídico, não deixando que a sabatina seja meramente homologatória — nos primórdios da vida republicana brasileira, o presidente militar Floriano Peixoto teve cinco indicações negadas porque era evidente o compadrio. Submeter o Judiciário vale mais que oxigênio para ditadores. No regime militar, os generais ampliaram de onze para dezesseis o número de membros do STF para garantir-lhes votos a favor. A Corte, ainda que furtada do instrumento jurídico do habeas corpus, foi aguerrida na resistência, mesmo tendo de assistir à aposentadoria compulsória de algumas de suas sumidades, a exemplo de Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal (Gonçalvez de Oliveira e Antonio Carlos Lafayette de Andrada aposentaram- se em solidariedade). Reavivar a ditadura é o delírio recorrente do capitão para se perpetuar no poder. O STF está mostrando-lhe, no entanto, que lugar de aventureiro político pode ser fora da história — ou dentro da cadeia.

Kleyton Amorim

Fina ironia

O ministro Barroso, alvo central das agressões verbais de Bolsonaro, mandou o capitão fechar a boca: postou a música “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico Buarque, censurada na ditadura militar