CENAS Margot Robbie em “Era uma vez em… Hollywood”: o corpo perfeito da atriz valorizou o figurino simples de sua personagem e vice-versa. (Crédito:Divulgação)

A moda e o cinema, que sociologicamente compõem o conjunto de símbolos do orgulho nacional da França, estão em festa. A Maison Chanel, uma das mais tradicionais e glamourosas grifes em todo o mundo, abriu suas portas em Paris para uma exposição que homenageia o consagrado cineasta da nouvelle vague, Jean-Luc Godard, e presta também um tributo a Anna Karina, sua atriz preferida, eterna musa e esposa por curto espaço de tempo nos anos 1960 – ela faleceu ao final do ano passado. Gabrielle Bonheur Chanel, a menina pobre criada em um orfanato, que procurou a vida inteira esconder a origem humilde e se transformou na deusa da moda Coco Chanel (ganhou o apelido de um regimento de cavalaria para o qual cantava), sempre foi apaixonada pelo cinema. Como intéprete, jamais brilhou. Problema zero. Ela criou os estilos e assinou os figurinos das protagonistas de filmes que se tornaram clássicos, e se assim o fez é porque inúmeros diretores, entre eles Godard, a procuravam para as suas produções. Com Anna Karina ela manteve uma ligação de amizade extremamente forte até o dia de sua morte aos 87 anos, em 10 de janeiro de 1971.

Mordida na língua

Karina a adorava, e não era para menos: quando ambas se conheceram no final da década de 1950, a atriz trabalhava com o seu nome verdadeiro: Hanne Karin Bayer. Coco Chanel ouviu e não gostou. Aconselhou-a a adotar um pseudônimo artístico mais fácil de cair no gosto dos franceses, de quem a estilista conhecia muito bem a alma que em alguns momentos carrega uma histórica e culta herança de sofisticação e, em outras ocasiões, revela-se surpreendentemente superficial. Assim brotou para o estrelato a monumental Anna Karina. Quanto a Godard, a profunda admiração e amizade nasceram em meio à efervescência da contracultura que inundou a França nos anos 1960. Três décadas antes, Chanel até produziu para o cinema americano, vestindo, por exemplo, Gloria Swanson, ícone dos filmes mudos. Mas a megalomania dos estúdios de Hollywood a consideravam simples demais. O tempo passou. A nouvelle vague fez com que críticos e detratores mordessem a língua. Nada mais natural e importante para os franceses, portanto, do que a mostra “Tout Godard”, que a Chanel faz nesse momento reunindo o próprio cineasta e a memória de Karina.

Gabrielle Bonheur Chanel, criada em orfanato e imortalizada como a estilista Coco Chanel, usava colares de pérolas com a naturalidade que uma ostra carrega o seu tesouro (Crédito:Divulgação)

 

 

Arte na rua

Não é exagero dizer, contudo, que a principal homenageada na exposição seja mesmo a própria Coco Chanel, a mulher que usava colares de pérolas com a naturalidade e o silêncio que uma ostra carrega o seu tesouro, a mulher que de repente passou a jogar para as costas as voltas dos colares, a mulher que era dona do estilo das roupas que desfilavam incessantemete nas telas. Vale lembrar os terninhos da atriz Victoria Abril no filme de Pedro Almodóvar, “De salto alto”. Do mesmo cineasta, em “Abraços partidos”, Penélope Cruz exibe uma coleção Chanel. Mas há ainda mais: Kristen Stewart veste figurino assinado por Coco no filme de Olivier Assayas “Personal shopper”, e quem não lembra da arte de Chanel no corpo de Margot Robbie em “Era uma vez em… Hollywood”, do diretor Quentin Tarantino? Para voltar a falar de Jean-Luc Godard, eis uma saborosa curiosidade: a artiz Jeanne Moreau era mesmo cliente de Chanel em sua vida particular, e para os filmes levava de casa os vestidos que precisava vestir nas interpretações, como foi no caso de “Uma mulher é uma mulher”.

ROTINA DA RAINHA DAS MAISON Coco Chanel em pleno trabalho: a concentração de sempre, a dedicação de sempre, o esmero de sempre, o cigarro de sempre (Crédito:Divulgação)

A glória de Chanel bateu no ápice quando o diretor Alain Resnais a contratou para criar o figurino de Delphine Seyrig no maravilhoso “O ano passado em Marienbad”. Só que Resnais exigiu que a estilista criasse modelos idênticos e em série para que fossem vistos na tela e também nas ruas. Ele pretendia, assim, valorizar a atemporalidade da arte. E conseguiu. Há motivo, então, para que a exposição “Tout Godard” esteja sendo festejada. Chanel fez as mulheres no cinema, as muleres do cinema fizeram Chanel no universo da moda. O gênio de Godard uniu esses dois pontos em seus moldes da nouvelle vague — uma nova estética a fazer contra ponto com as poderosas produções dos EUA e que calçava feito luvas nos movimentos contestatórios parisienses da década de 1960.