A CRIATURA Bolsonaro é recebido no aeroporto de Aracajú (SE), onde foi inaugurar uma usina termoelétrica em agosto de 2020 (Crédito:Alan Santos/PR)

Distanciados no espectro político, os dois revelam uma profunda identificação quando se trata de arrebanhar votos e elucubrar projetos de poder de longo prazo. Se até pouco tempo antes das eleições o presidente era um crítico ferrenho de planos de renda básica, agora ele mudou o discurso e só pensa em dar uma nova embalagem ao Bolsa Família e outras ideias lançadas pelos tradicionais inimigos. Só falta Bolsonaro deixar a barba. Embora sejam indispensáveis num país desigual e injusto como o Brasil, os programas de renda mínima estão se tornando uma espécie de voto de cabresto modernizado em que se controla o eleitor por meio da utilização da máquina pública e do poder econômico do Estado. Para diminuir a pressão social e compensar a ausência dos empregos que não ajuda a gerar, o governo garante um pagamento mensal aos pobres e miseráveis. Se na República Velha, nos currais eleitorais, o cabresto era sinônimo de coação, agora ele é mais suave e bem-vindo: dinheiro na conta do cidadão (e potencial eleitor) desfavorecido. Todo mundo ganha, mas quem ganha mais é o líder populista. “O governo Bolsonaro é todo voltado para a questão da reeleição e como faltam quadros técnicos para formular programas sociais, ele copia os já existentes”, afirma o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper. “Durante a pandemia, o presidente percebeu que o auxílio emergencial aumentou sua popularidade e atraiu o apoio de eleitores mais pobres”. Consentino reforça, porém, que esses planos são facilmente instrumentalizados para a obtenção de vantagens eleitorais. O PT se perpetuou no poder usando politicamente o Bolsa Família com ameaças de que se um adversário ganhasse as eleições, o programa acabaria. Há uma espécie de chantagem embutida no benefício.

CAMPANHA Apoiadores se reúnem na praia de Copacabana durante manifestação “Mulheres pelo Bolsonaro”, em 2018; família em São Paulo participa da campanha eleitoral de Lula, em 2002 (Crédito:CARL DE SOUZA/MAURICIO LIMA)

A ajuda emergencial serviu para eliminar as dúvidas de Bolsonaro sobre a eficácia econômica e eleitoral desses programas. Seu limite é o teto de gastos, aprovado durante o governo de Michel Temer, que fixa as despesas e investimentos no mesmo valor desembolsado no ano anterior, corrigido pela inflação. Mas o presidente conta com a flexibilização do teto, por causa dos custos emergenciais relacionados à pandemia. As mais recentes pesquisas de intenção de voto do Datafolha mostraram que ele está ganhando popularidade e o dinheiro da ajuda tem muito a ver com isso. “O auxílio emergencial causou uma transferência muito elevada num curto espaço de tempo que compensou as perdas da crise”, diz o professor Lauro Gonzalez, professor do departamento de Finanças e coordenador do Centro de Estudos em Micro-finanças e Inclusão Financeira da FGV-SP. ”Isso se reverteu em apoio para o governo”. Para Gonzalez, que acaba de concluir um estudo sobre o auxílio emergencial, os programas de transferência de renda são de Estado, não de governo e não têm uma associação automática com o populismo, o que depende da forma de comunicação do líder político. “Em países com alto índice de desigualdade, é difícil imaginar alguém governando com apoio popular sem políticas sociais relevantes”, afirma.

Eixos de atuação

A estratégia política de Bolsonaro para se reeleger em 2022 envolve três eixos de atuação: além da renda mínima, há um programa habitacional e um plano de aceleração de obras espalhadas pelo Brasil, principalmente no Norte e Nordeste. Em um ano, Bolsonaro, usando novas marcas, apresenta uma versão condensada do que Lula fez em seus oito anos de governo, primeiro com o Bolsa Família, criado em 2002, e depois com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e com o Minha Casa, Minha Vida, plano de financiamento de casas populares. No embalo do auxílio emergencial, que era de R$ 600 e ficará em R$ 300 até o fim do ano, Bolsonaro pretende aumentar o Bolsa Família, rebatizado de Renda Brasil, para R$ 300 – atualmente, paga-se, em média, R$ 190 – e ampliar o número de beneficiários de 14,2 milhões para 22 milhões. Para isso, como aconselha o ministro da Economia, Paulo Guedes, o governo talvez tenha que eliminar benefícios atualmente assegurados, caso do abono salarial, que beneficia 23,2 milhões de trabalhadores por ano, do seguro-defeso (pago ao pescador artesanal) e do Farmácia Popular. Quando lançou o Bolsa Família, Lula também agrupou benefícios herdados do governo Fernando Henrique Cardoso que estavam espalhados, como o Bolsa Escola e Bolsa Renda, que dava R$ 60 aos assistidos e teve o nome mudado para Cartão Alimentação. Tanto Lula como Bolsonaro, antes de incorporarem essas políticas públicas como suas, chamavam os programas de assistência direta de “esmola”.

MORADIA Lula entrega imóvel do Minha Casa, Minha Vida no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 2010; Bolsonaro faz o mesmo em Belém (PA), em 2020 (Crédito:Beth Santos/ Alan Santos/PR)

O programa habitacional de Bolsonaro, o Casa Verde e Amarela, lançado no dia 25 de agosto, tem uma estrutura semelhante ao Minha Casa, Minha Vida, criado por Lula em 2009. Há, porém, algumas diferenças importantes. Enquanto o Minha Casa, Minha Vida tem quatro faixas de renda, o Casa Verde Amarela é dividido em três grupos. O grupo eliminado no plano do atual governo é, justamente, o de faixa de renda mais baixa, de até R$ 1,8 mil, que comprava o imóvel 90% subsidiado com prestações mensais fixas. Na esteira da queda da Selic, as taxas de juros anuais também caíram ligeiramente, de 4,5% para 4,25% no grupo inicial, com renda até R$ 2 mil, e de 8,16% para 7,66%, no grupo dos que ganham até R$ 7 mil. Uma peculiaridade do programa de Bolsonaro é a vantagem concedida para os cidadãos do Nordeste, que terão taxas de juros meio ponto percentual mais baixas do que no resto do Brasil. Além de não corrigir problemas do antecessor, o Casa Verde e Amarela reduz a construção de casas para a faixa que mais precisa, a dos mais pobres.

AUXÍLIO EMERGENCIAL População faz fila em São Paulo para receber benefício concedido durante a pandemia (Crédito:Lucas Landau)

Quanto às obras de infraestrutura, Bolsonaro só está fazendo o óbvio, inaugurando construções iniciadas por Lula e Dilma e as tratando como suas. A inauguração de obras de transposição do Rio São Francisco, no Ceará, em junho, é um exemplo evidente dessa apropriação de projetos. O plano de curtíssimo prazo do presidente é entregar 33 construções até o fim do ano em todas as regiões do Brasil. Ele aumentou os recursos orçamentários para projetos de infra-estrutura e, desde maio, quando retomou as viagens para fazer inaugurações, privilegiou o Nordeste, por conta de seus planos eleitorais. Além de ser a região com índices de miséria mais altos, é onde ele quer virar o jogo e minar a popularidade que Lula ainda preserva. Bolsonaro faz um trabalho corpo a corpo para alardear os feitos do governo, no estilo que seus antecessores faziam para promover os projetos do PAC.

Programas de renda mínima são máquinas de angariar votos. Injetam dinheiro na parte baixa da pirâmide social, diminuem a desigualdade e causam uma reação em cadeia que movimenta as economias locais e trazem importantes consequências macroeconômicas. Na eleição de 2006, quando venceu o segundo turno com 61% dos votos válidos, mesmo percentual de 2002, Lula viu o perfil de seu eleitor mudar radicalmente por causa do Bolsa Família. Em 2002, ele foi bem votado especialmente nos municípios de melhor situação social e, em 2006, o voto veio de cidades com indicadores sociais ruins. Sociólogos e cientistas políticos detectaram que o Bolsa Família chegou para atrair eleitores pobres, com forte apelo populista. Mais de 86% dos beneficiários votaram em Lula no segundo turno de 2006, de acordo com um estudo publicado, em 2009, pelos professores Elaine Lício e Lucio Rennó, da Universidade de Brasília.

RENDA BRASIL Bolsonaro recusa proposta de Guedes e quer benefício de R$ 300 no programa que substituirá o Bolsa Família (Crédito:GABRIELA BILO)

Estratégia política

“Essa história de Renda Brasil é para fazer a população esquecer da história do Lula”, diz a socióloga Walquíria Leão Rego, professora aposentada da Unicamp e autora do livro “Vozes do Bolsa Família – autonomia, dinheiro e cidadania”. “Isso faz parte de uma política de silenciamento, de eliminação da memória”. Segundo ela, não há necessidade de lançar um programa substituto do Bolsa Família, que tem uma estrutura montada há mais de 15 anos e já provou seu bom funcionamento, mas de aperfeiçoá-lo. “Vejo a iniciativa do governo como algo absolutamente eleitoral – eles querem tirar vários benefícios que já estão consolidados para aumentar o valor da renda mínima”, afirma. Enquanto era deputado, Bolsonaro foi um crítico ferrenho do Bolsa Família. Em 2010, ele dizia, por exemplo, que o programa era uma espécie de moeda de troca, com o objetivo de comprar votos no Nordeste. “Agora, o governo federal dá para 12 milhões de famílias em torno de R$ 500 por mês, a título de Bolsa Família e sai na frente com 30 milhões de votos”, disse o então deputado num discurso em plenário. “Disputar eleições num cenário desses é desanimador, é compra de votos mesmo”. Mas, agora, que está na presidência, Bolsonaro mudou de posição e o que mais quer é surfar nos programas sociais do antecessor para obter eleitores cativos nas camadas mais vulneráveis da população. Com isso, ele pavimenta o caminho para se reeleger em 2022.