ALTO RISCO Bar no Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro: nada de máscara. É como se a pandemia não existisse (Crédito:Divulgação)

Muito em breve serão tomadas no Brasil, inevitavelmente, sérias medidas restritivas à flexibilização da quarentena — e é certo que o tão sonhado verão e esse final de primavera se farão tempos ainda mais sombrios de isolamento. Motivo: uma segunda onda de proliferação de contágio pelo coronavírus chegou ao País e já deu mostras de que será tão calamitosa como a que castiga o continente europeu e os EUA. Na quarta-feira 25 o mundo registrou o maior número de mortes por Covid em um dia (12.785), e o Brasil está entre as nações que pressionaram o índice para o alto. A opinião unânime dos profissionais de saúde que estão na linha de frente é que no País a situação faz-se dramática. A Fundação Oswaldo Cruz publicou na semana passada um relatório no qual mostra que passou de quinze para vinte e um a quantidade de estados que estão com taxas alarmantes. Ainda na quarta-feira, o Brasil anotou seiscentas e vinte mortes em apenas vinte e quatro horas.

“As pessoas estavam com a paciência esgotada, estavam no limite” Rosana Richtmann, infectologista, explicando, mas não aprovando, a corrida às praias, bares e demais lugares, sem as devidas medidas protetivas (Crédito:Leonardo Rodrigues)

É incrível, a gente morre, mas ele, o vírus, não. Só se replica. No Rio de Janeiro, por exemplo, houve um crescimento assustador de 93% na ocupação de leitos de UTI ­— e muitos outros leitos públicos, de responsabilidade da União, encontram-se em pandarecos e não podem ser utilizados. Em São Paulo, a situação é igualmente preocupante: “Está tudo voltando como foi no começo”, disse o vice-presidente do Hospital Albert Einstein, Marcos Knobel. “É um caso atrás do outro. E todos estão se contaminando em aglomerações”. Em um quadro mais amplo, estima-se que somente na capital paulista a taxa de ocupação em UTIs tenha retornado à casa dos 60%. Situações gravíssimas também são vistas no Amazonas, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que seguem com 82%, 62,9%, 74,9% e 87,3% de lotações, respectivamente. Um documento dos profissionais da saúde na esfera pública explicitava que o “Brasil já está em uma segunda onda”. Enfim: se a abertura do isolamento social não for revista, ter-se-á um verdadeiro tsunami de Covid-19.

PRAIA E CIDADE Como em diversos países, a profilaxia da não aglomeração e o distanciamento social foram pouco respeitados

Entre a cruz e a espada

Era inevitável que a flexibilização da quarentena, sobretudo a abertura das praias, dos parques, bares, cinemas, do futebol e das academias conduzisse o País a esse desastre. Mas como não flexibilizar e como não se abrir para a vida se a população, justificadamente, não aguentava mais ficar trancada? “Todo mundo estava com a paciência esgotada”, declarou recentemente Rosana Richtmann, uma das mais conceituadas infectologistas em todo o mundo, doutora em medicina pela Universidade de Freiburg, na Alemanha. O vírus, uma das mais rudimentares formas de vida na Terra, colocou o ser humano, a espécie que biologicamente é dona da maior complexidade, entre a cruz e a espada: se não houvesse a flexibilização, certamente haveria um “surto” de depressão — já há episódios de graves danos mentais. Ocorre, porém, que com a flexibilização o vírus retomou o seu incansável ataque — como todo ser vivo, ele “quer instintivamente” sobreviver, “quer” se reproduzir e, para tanto, precisa de nossos receptores celulares. Antes de abrir as praias, por exemplo, deveríamos ter olhado no retrovisor e observado o caos e o recrudescimento da pandemia que ocorrem com a abertura do litoral na Espanha, em Portugal e sul da Inglaterra? Não olhamos para o velho continente nem para os EUA, e some-se a tudo isso as circunstâncias de eleições no País.

“A pandemia nunca deixou de existir no País, só que agora ela voltou com força total” Leonardo Weissmann, médico infectologista do Instituto Emílio Ribas e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (Crédito:Renato Siqueira)

Mais metro quadrado

“Vivemos uma situação dramática e sem horizonte. Temos de fechar ambientes que são locais de grande transmissão e suspender eventos de aglomeração”, disse Lígia Bahia, especialista em Saúde Pública. “Ou, sem isso, abrir leitos”. É bem triste, são duras essas opções! E, em alguns lugares, vê-se loucura política. Tome-se o Rio de Janeiro. A Prefeitura assinou decreto expandindo o espaço das calçadas para bares colocarem mesas e cadeiras. Ou seja, aprovou-se mais metro quadrado para aglomeração. Com isso, brota e cresce e se escancara outro problema na sociedade: muitas e muitas pessoas não usam máscaras. Esse é um importante ponto para que tenhamos chegado ao estágio em que chegamos: sem os cuidados de parte da população não foi possível conter razoavelmente o vírus, e sem contê-lo não há como barrar a segunda onda. “A pandemia nunca deixou de existir no País, só que agora ela voltou com força total”, disse Leonardo Weissmann, médico infectologista do Instituto Emílio Ribas e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia. “As pessoas perderam o medo do vírus e isso aumentou muito a velocidade de propagação”. Vale dar voz, agora, à médica intensivista dos hospitais São Camilo e São Luís, Nicolle Queiroz: “É por esse motivo, é devido uma segunda onda, que eu estou saindo do meu laboratório e voltando às UTIs”. Atuar em UTI é a linha de frente da frente, após ela vem o precipício da morte do paciente.

O que se sabe, até o momento, é que a segunda onda no Brasil acontece de uma maneira peculiar — e muitos médicos não utilizam esse termo em respeito ao tecnicismo. Diferentemente de outros países que tiveram um aumento nos casos da Covid-19 após derrubarem a contaminação a ínfimos patamares, o Brasil se vê colocado novamente na curva de subida sem sequer ter estancado consideravelmente a primeira onda. E há, em algumas pessoas, um difuso e confuso sentimento de que tudo está normal, um sentimento de que não há doença, e isso vem da má fé do governo federal. Façamos uma pergunta: Jair Bolsonaro, nessa segunda onda, a população brasileira e mundial é feita de “maricas” e “moleques”? Mesmo com gente atrapalhando, como ele o faz, chegará, no entanto, o dia em que o vírus pagará o preço do estrago que fez: virá a vacina.

Vírus em campo

Uma das maiores paixões nacionais virou epicentro de contágio pelo coronavírus. A doença está, praticamente, desmantelando times em todo o País. Um dos exemplos é a equipe paulista do Palmeiras – até a quarta-feira 25 ela contava com dezoito atletas infectados. Também o Santos, time igualmente paulista, passava mal nessa mesma data: dezessete casos de Covid-19 no futebol masculino e vinte e dois episódios no feminino.

A proliferação do vírus se dá, principalmente, durante as partidas (não há torcedores nos estádios) porque é impossível a bola rolar em campo sem que haja contato físico entre os jogadores. Especialistas acreditam, no entanto, que a explosão começou fora dos gramados. Ou seja: os próprios atletas passaram a se descuidar em relação às medidas de segurança (uso de máscara, distanciamento social e a constante higienização das mãos) e, com isso, levam a doença para toda população. Para que se tenha noção da dimensão do problema, 20% dos jogadores (clubes da CBF) foram infectados recentemente.

Diego Vara

As comemorações pela marcação de gols e os abraços entre os jogadores nesses momentos é caminho pavimentado para a doença: não há aglomerações com pessoas tão próximas, umas das outras, como ocorre nos cumprimentos ao colega artilheiro.

O próprio líder do Campeonato Brasileiro, o Atlético Mineiro, teve dez casos no elenco. A zaga do Atlético, que vinha sendo uma das mais fortes no torneio, tornou-se vulnerável diante do adversário invisível. A crise é tão grave que a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo decidiu tomar providências na semana passada: convocou a Federação Paulista e a CBF para que, juntas, criem medidas de proteção. Uma indagação faz-se óbvia: se estão demonstrando ser fábrica de vírus, por que os jogos continuam? Convenhamos que campeonatos, que nem públicotêm, estão longe de ser serviço essencial à sociedade.