No primeiro volume de O capital (1867), Karl Marx afirmou que o “trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”. Lapidar, a frase é um dos frutos das muitas conclusões tiradas por Marx e Friedrich Engels em artigos, cartas e documentos que ambos produziram acerca da Secessão – o conflito travado entre 1861 e 1865, entre a União (o norte abolicionista) e os Estados Confederados (grosso modo, o sul escravocrata), motivados justamente pelo regime de servidão dos negros. Esses escritos estão reunidos agora em A Guerra Civil dos Estados Unidos, título recém-lançado pela Boitempo.

Para Murillo van der Laan, sociólogo da Unicamp, responsável pela seleção e organização dos textos, esta troca entre os dois pensadores alemães revela como a Guerra concretizou ideias que eles já vinham elaborando desde a década de 1840 e como ambos tinham um profundo comprometimento “com a necessidade urgente da abolição da escravidão”, que encontrava à época a resistência ou a negligência de setores organizados dos trabalhadores dos EUA.

“O fim da escravidão e a necessidade de superação de divisões racistas entre os trabalhadores eram vistos por Marx e Engels como um passo urgente para o desenvolvimento de lutas, como a redução da jornada de trabalho e a emancipação humana da opressão e da exploração no capitalismo”, afirma van der Laan, à ISTOÉ. “O movimento de escravos nos EUA era considerado, por Marx, já desde antes da Guerra Civil, como ‘o que de mais grandioso ocorria no mundo’”. A seu ver, o conflito e as consequentes análises dos teóricos reverberaram na luta trabalhista no século XX na Europa, entre os norte-americanos e mesmo no Sul Global.

Documento histórico: A guerra civil americana sob os olhos de Marx e Engels
MÍDIA Tela intitulada Escrevendo para o New York Daily Tribune,
de Song Ke: Engels e Marx foram colaboradores do jornal americano (Crédito:Divulgação)

“O fim da escravidão e a necessidade de superação de divisões racistas eram vistos por Marx e Engels como um passo urgente para o desenvolvimento de lutas, como a redução da jornada de trabalho” Murillo van der Laan, sociólogo

Trabalho de fôlego, o projeto do livro vem sendo concebido desde 2019 e tem à frente, além de van der Laan, o editor Pedro Davoglio e Luiz Felipe Osório, tradutor dos textos originais em alemão. O sociólogo, por sua vez, ocupou-se também das versões dos escritos em inglês, para o português. Segundo a editora, a obra é considerada a “mais completa compilação em português sobre o tema”.

Van der Laan lembra que outros projetos já se debruçaram sobre o assunto no passado: o professor Muniz Gonçalves Ferreira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, fez “um trabalho pioneiro de pesquisa e divulgação”. E, em 2020, Ferreira e Felipe Vale da Silva organizaram uma coletânea dos artigos sobre o assunto, lançada pela editora Aetia. Mas, ele faz a ressalva, o livro não trazia as cartas trocadas entre Marx e Engels sobre o conflito.

Segundo van der Laan, os artigos publicados pelos alemães na imprensa não cobrem todo o período do conflito. E, durante os seis primeiros meses da guerra, as contribuições dos correspondentes internacionais ao jornal New York Daily Tribune foram suspensas, incluindo as de Marx. Nesse período, ele ressalta, é possível acompanhar as avaliações de Marx e de Engels apenas pelas cartas.

“Os detalhes das batalhas, os imbróglios em torno da proclamação da emancipação, a importante solidariedade da classe trabalhadora inglesa à abolição, a possibilidade da formação de batalhões negros e das rebeliões de sujeitos escravizados durante esse período aparecem naquelas correspondências”, salienta.

Com o fim da Guerra Civil americana, em 1865, veio a abolição da escravatura nos EUA, o que só aconteceria no Brasil em 1888. Segundo van der Laan, apesar de se debruçarem sobre os conflitos internacionais em torno da Secessão, os artigos de Marx e Engels não comentaram a situação brasileira. Mas ele ressalta que a Revolução Haitiana, a Guerra Civil dos EUA e as diversas resistências negras à escravidão foram cruciais para o movimento internacional que pôs fim à escravidão, inclusive no País.

“No livro, eles se posicionaram contundentemente contra o colonialismo europeu na África, na Ásia e nas Américas. Falaram, por exemplo, da continuidade do comércio transatlântico de sujeitos escravizados, da manipulação dos mercados indianos e chinês pela Inglaterra durante a Guerra Civil, das intervenções da Espanha, da França e da Inglaterra no México”, conclui.

E na contemporaneidade, como as análises de Engels e Marx nos ajudam a entender, por exemplo, a crescente polarização política norte-americana? E a utilização da bandeira dos Confederados como um dos principais símbolos dos movimentos supremacistas brancos do país? Em 2015, por exemplo, ela apareceu em fotos do atirador Dylann Roof, condenado à morte por matar nove pessoas em uma histórica igreja da comunidade negra na cidade de Charleston.

Para van der Laan, “a questão é complexa”. Ele cita o texto da orelha do livro, em que a professora Cristiane Sabino, da Universidade Federal de Santa Catarina, aponta que, embora “a escravidão fosse o motivo da guerra, inicialmente a emancipação dos negros escravizados nem sequer era cogitada pelo lado contrário à escravidão”.

“Entre os Confederados, a perspectiva, segundo Marx e Engels, era de expansão da escravidão inclusive para fora dos EUA”, conta o sociólogo. “O modo como os trabalhadores brancos livres, pressionados pela insegurança trazida pela acumulação capitalista, expressavam de maneira racista seus temores, insuflados por uma imprensa conservadora, é narrado por Marx”.

De acordo com van der Laan, todo este processo parece ter continuidade na história norte-americana e se exacerbou recentemente com a eleição de Trump. Ele pondera, no entanto, que as contradições entre raça e classe não serão resolvidas pelo lado “progressista” dessa polarização.

“A meu ver, guardadas as devidas proporções, tanto na Guerra Civil quanto nos EUA de hoje, o mais importante segue sendo o impulso à própria organização dos sujeitos explorados e oprimidos em torno de um futuro emancipado”.