O termo “saga” tem origem na Escandinávia, mas descreve perfeitamente uma obra-prima diametralmente oposta, tanto em calor humano quanto em aridez: narrado no sertão nordestino, “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, é o ápice do romance de aventura na literatura brasileira. Mais que um livro, é a própria vida do autor paraibano transformada em palavras. Escrito entre 1958 e 1970, e publicado no ano seguinte, completa cinco décadas e ganha bela edição da Nova Fronteira, é a 17a — mesmo com o livro fora de catálogo por quase trinta anos, de 1976 a 2004. Traz ainda o volume extra “Cadernos de Textos & Imagens”, com a reprodução de documentos relacionados ao seu processo de criação e divulgação, de manuscritos inéditos a obras de arte derivadas, de Suassuna e terceiros.

“Esse livro será sempre atual porque o ser humano não muda” Ariano Suassuna, sobre “A Pedra do Reino” (Crédito:Divulgação)

“Escreva sobre sua aldeia e serás universal”, escreveu Liev Tolstói. O Brasil está repleto de casos que confirmam a teoria do mestre russo. Do submundo urbano de Rubem Fonseca aos épicos dos pampas de Érico Veríssimo, nossa literatura prima pela diversidade de paisagens — e o sertão é o protagonista da obra de Suassuna. “A Pedra do Reino” é geralmente comparado a “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, outro romance que traça limite geográfico específico, o norte de Minas Gerais. A diferença entre eles, porém, é evidente, como atesta o texto publicado em 1971 pela escritora Rachel de Queiroz: “Rosa era um inventador de pessoas e palavras, manufaturadas por ele em seu laboratório. Já a língua de Suassuna existe, existiu sempre: pode ser arcaica e preciosa em alguns momentos, dando a impressão de inventiva, mas são palavras que, hoje ou ontem, o uso poliu e afeiçoou.” Rachel de Queiroz prossegue “Só o comparo a dois sujeitos: Villa-Lobos e Portinari. Neles, a força do artista realiza o milagre da integração do popular com o erudito.”

Essa era mesmo a intenção de Suassuna, fato que ele tornou oficial ao liderar nos anos 1970 o “Movimento Armorial”, que pretendia criar uma arte erudita brasileira a partir das expressões populares. O “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, título completo de sua maior obra, era o ponto de partida.

O enredo é inspirado por um fato histórico ocorrido em 1838 no vilarejo da Pedra Bonita, em Pernambuco, hoje Pedra do Reino. Um líder messiânico fundara uma comunidade baseada no mito do rei português Dom Sebastião, supostamente morto em batalha contra os mouros no século 16. No livro, o herói Dom Pedro Dinis Quaderna narra suas aventuras a partir da prisão, onde está detido por subversão da ordem pública. É uma espécie de encontro entre Dom Quixote e a literatura de cordel, com toque autobiográfico: há referências à Revolução de 1930, na Paraíba, evento que levou ao assassinato no Rio de Janeiro de seu pai, João Pessoa Suassuna, governador do Estado à época.

“A Pedra do Reino” Ariano Suassuna
Ed. Nova Fronteira Preço: R$ 224

Graças ao material extra organizado por Carlos Newton Júnior, descobre-se que o longo romance seria apenas a primeira parte de uma trilogia nunca finalizada. Suassuna confessou que não conseguiu manter o distanciamento necessário com o personagem-narrador. Só concluiu a história a pedido da Globo, cuja adaptação para uma minissérie na TV gerou uma premiada versão dirigida por Luiz Fernando Carvalho, em 2007.

O paraibano pode ser considerado o inventor da “multimídia”: sem tecnologia, criou uma obra que nasceu como livro, mas que evoluiu para teatro, artes plásticas, poesia e música. Batizou essa integração entre gêneros de “Ilumiara”, centros culturais que abrigariam diversas expressões da arte brasileira. Ao tornar-se Secretário de Cultura de Pernambuco, em 2012, promoveu a criação dessas “Ilumiaras” por todo o Estado, inclusive a “Ilumiara da Pedra do Reino”.

Em uma de suas últimas entrevistas, em 2014, aos 87 anos, o autor afirmou que “esse livro será sempre atual porque o ser humano não muda”. “A história diz respeito a todos os lugares e todos os tempos que o mundo venha a viver porque ela toca num problema humano: esse desejo de se alçar acima de si mesmo, em busca de uma realidade maior que essa que nos cerca.”