A saga de uma família palestina que sobreviveu à guerra em Gaza

A saga de uma família palestina que sobreviveu à guerra em Gaza

"YasserConflito entre Israel e Hamas virou a vida do palestino Yasser Al-Ghalayini do avesso. Dois anos depois, ele, a mulher e o filho finalmente puderam voltar para o que restou de sua casa.Era um dia frio de inverno em janeiro de 2013 e Yasser, à época chefe de cozinha assistente em um restaurante de hotel, preparava um banquete de casamento na Cidade de Gaza .

Wajiha, prima da noiva, aproveitava a festa, a comida e a música. Com quase 18 anos, ela nunca tinha pensado muito em casamento. Mas naquela noite, ao voltar para casa, ela viveu o que mais tarde descreveria como "a coincidência mais bonita": encontrou Yasser. Por capricho do destino, ele havia encerrado o expediente naquele mesmo momento.

"Trocamos olhares de admiração. Ela estava tão bonita", relembra ele. "Dois meses depois, pedi ela em casamento", diz, corando. Eles se casaram em abril e, no ano seguinte, deram as boas-vindas ao primeiro filho, Ammar, hoje com 11 anos.

7 de outubro de 2023: o dia que mudou tudo

Sete anos depois, Wajiha, já dona de casa, foi diagnosticada com câncer de tireoide e passou a ter que viajar regularmente até o Egito para se tratar com iodo radioativo, terapia que não estava disponível em Gaza.

"Apesar de todas as dificuldades, tentamos manter nossa rotina familiar", relata Yasser.

Mas o 7 de outubro de 2023 – dia em que o Hamas lançou seu ataque terrorista contra Israel – mudou tudo para a família.

"Naquela manhã, Ammar estava se preparando para ir à escola, de uniforme e mochila nas costas", conta Yasser. Até que "explosões ecoaram por toda a cidade". A escola foi cancelada e "notícias horríveis começaram a chegar". Foram dias de caos e medo. Em 13 de outubro, o exército israelense ordenou a civis que evacuassem imediatamente a Cidade de Gaza e se dirigissem ao sul da Faixa de Gaza.

"Deixamos tudo para trás", afirma Yasser.

15 meses sem lar

Eles partiram ao amanhecer, a bordo do pequeno carro da família e sob bombardeios incessantes. Eventualmente, chegaram ao campo de refugiados de Nuseirat, onde Yasser foi buscar suprimentos. Ali, presenciou o bombardeio de uma casa e viu, em meio à fumaça, o que pareciam ser três ou quatro corpos, além de muitos feridos. "Depois disso, ver corpos nas ruas se tornou uma visão normal em todos os lugares por onde passei", diz.

A família encontrou abrigo temporário na casa de um parente. Mas ali não havia eletricidade, água, remédios nem privacidade. "A casa estava superlotada, abrigando mais de cem pessoas – homens, mulheres e crianças; todos deslocados, como nós, em busca de uma segurança que já não existia", conta.

Quando o gás acabou, Yasser passou a cozinhar em um fogão de acampamento com lenha. Ele assava pão em fornos de barro antigos, e Wajiha lavava as roupas em baldes. Ammar lutava para acompanhar as aulas online, constantemente interrompidas por quedas de internet. "As escolas viraram abrigos para os deslocados, lotadas de crianças que perderam seus livros e seus sonhos", lamenta o pai.

Dias depois, em 18 de outubro, eles foram informados por telefone que a casa da família de Wajiha na Cidade de Gaza havia sido bombardeada. "Dezoito membros da família foram martirizados, incluindo pai, mãe, irmã, irmão, a esposa do irmão e seus filhos."

"O choque foi insuportável", afirma Yasser. "Minha esposa desabou. A saúde mental e física dela se deteriorou. Não conseguíamos encontrar remédios nem médicos, já que os hospitais estavam sobrecarregados."

Depois de mais de dois meses, eles se viram impelidos a deixar Nuseirat e se deslocar ainda mais para o sul, seguindo ordens do exército israelense, rumo a uma "zona segura" no campo Mawasi, na cidade de Khan Younis. Exaustos e temerosos – e cientes de que pessoas já haviam sido mortas nas tais "zonas seguras" –, eles obedeceram com alguma relutância.

Desabrigados, os três tiveram que dormir no carro, junto com a mãe e a irmã de Yasser, que haviam se juntado a eles. Não tinham comida, água, sabão, xampu, pasta de dente ou absorventes, e dependiam da bondade alheia para suprir até as necessidades mais básicas. "Vivemos dias inesquecíveis de privação", diz Yasser.

Apesar das dificuldades, a família fazia questão de marcar ocasiões especiais, comemorando aniversários e datas importantes juntos. "Assamos um bolo simples com pouquíssimos ingredientes, apenas para manter a sensação de vida", explica Yasser.

No início de 2024, ele conseguiu encontrar um pequeno apartamento em Rafah, a cidade mais ao sul de Gaza, e vendeu o carro para pagar o aluguel. Apesar das circunstâncias difíceis, parecia um pequeno passo rumo à estabilidade.

Logo depois, a mãe e a irmã dele conseguiram escapar pela passagem de Rafah para o Cairo, após pagarem 5 mil dólares cada a um intermediário egípcio. A família do irmão tomou o mesmo rumo pouco depois, mas Yasser ficou para trás junto com a mulher e o filho, porque não tinha dinheiro suficiente para tirá-los dali.

Esperanças frustradas

A saúde de Wajiha piorava, e Yasser solicitou tratamento médico urgente para ela no Cairo, capital do Egito. O pedido para que a família viajasse junta foi negado — apenas Wajiha foi autorizada a ir, mas ela se recusou a partir sozinha. Yasser lembra que, entre lágrimas, ela disse: "Não tenho vida sem vocês; se eu morrer, quero morrer entre vocês."

Após três meses, o dinheiro de Yasser acabou, e a família foi despejada. Um amigo os levou até a cidade central de Zawaida, onde montaram uma barraca no terreno de parentes. Pelos sete meses seguintes, enfrentaram condições duras, fazendo longas caminhadas para buscar água, comida e remédios.

Então, em 27 de janeiro de 2025, um cessar-fogo humanitário permitiu que centenas de milhares de palestinos retornassem ao norte de Gaza. Para Yasser, foi como "renascer depois de uma longa morte", mesmo que a caminhada de volta tenha durado quatro horas. "A esperança de retornar à nossa cidade querida era mais forte do que qualquer dor."

Quando Yasser, Wajiha e Ammar voltaram, encontraram apenas ruínas. "O ar estava denso com o cheiro de tristeza e cinzas", descreve o pai. "Nossa casa havia sido saqueada e parcialmente destruída."

Eles começaram a se reerguer, e abrigam amigos que haviam perdido tudo. Mas aquela fase duraria pouco, para desgosto de Yasser. "Fomos acordados tarde da noite pelo rugido de aviões israelenses bombardeando nas proximidades", conta. A guerra estava de volta, e a entrada de ajuda humanitária no enclave foi totalmente bloqueada .

Fome assola Gaza

"Durante o Ramadã, o mês da misericórdia, a fome caiu sobre nós", relembra Yasser.

Com um quilo de farinha custando 30 dólares, eles foram forçados a sobreviver com apenas uma refeição por dia pelos seis meses seguintes. Seus corpos começaram a definhar, e Wajiha sofreu convulsões. "Todos os dias, eu ia a lugares distantes, às vezes perigosos, apenas para conseguir uma dose de remédio ou um pouco de comida, mas nunca era suficiente."

Em 10 de setembro, a família recebeu novas ordens de evacuação do exército isralense. Até chegaram a resistir por alguns dias, mas, quando os bombardeios se tornaram insuportáveis, puseram-se de novo em marcha – desta vez a pé, rumo ao desconhecido.

Eles caminharam para o sul até Deir al-Balah, onde Yasser teve que dividir os custos de um apartamento com um amigo, já que os preços dos aluguéis haviam disparado. Parentes transferiam dinheiro para ajudar, mas 40% dos valores se perdiam em comissões cobradas.

O recomeço

Em 10 de outubro, um novo cessar-fogo trouxe alívio à família. De volta à Cidade de Gaza, eles se depararam com uma realidade devastadora. "A escala da destruição era maior do que qualquer coisa que eu já tinha visto", diz Yasser. O entorno da casa, e até o telhado, estavam repletos de projéteis não detonados.

Equipes da Defesa Civil eventualmente limparam a região. Ainda assim, para onde Yasser olhasse, só se via escombros. Estava claro que a reconstrução levaria anos, e que mesmo assim eles conseguiriam reconquistar apenas fragmentos da vida que levavam antes da guerra.

"A parte mais difícil disso tudo é viver cada momento pronto para morrer", afirma Yasser.

Embora já quase não haja mais guerra em Gaza, o sofrimento dele só se aprofundou. Sua única esperança, diz, é que Wajiha possa retomar seu tratamento, que Ammar possa voltar à escola e que, algum dia, eles finalmente possam viver em paz novamente.

Israel não permite o acesso livre e irrestrito de jornalistas estrangeiros à Faixa de Gaza. O repórter da DW Ben Fajzullin só pode conversar esporadicamente com Yasser Al-Ghalayini por telefone, ao longo das últimas semanas, em meio a quedas de internet e de energia.