Desde que a pandemia começou, os Sampaio não saem de casa para nada.

Alfredo, o pai, é corretor de imóveis.

É difícil trabalhar de casa, mas tem se virado.

A mãe, Jomara, que só cuidava do lar, agora vende congelados.

E a filha, Juliana, faz faculdade de economia, mas trancou.

Os três votaram confiantes no Haddad em 2018 e nunca se surpreenderam com as trapalhadas que o presidente eleito aprontava.

A frase que Alfredo mais repete: “eu avisei”.

Virou até piada na família e agora usam o “eu avisei” para tudo, só para brincar com o pai.

Diferente de muitas famílias, não tiveram dificuldade para se adaptar à nova rotina.

Jomara passa quase o dia todo na cozinha preparando esfirras para vender para a vizinhança.

Alfredo fica sempre no computador, falando com clientes.

E Juliana, como já fazia antes da pandemia, só sai do quarto para comer. Domingo passado, tudo mudou.

Quando a mãe chamou a família para almoçar, Juliana apareceu com uma camiseta com a palavra “Mito”, desenhada à canetinha. A letra “O” a jovem trocou por um coração.

O pai até tentou fingir que não viu, mas não deu.

– Ju, que que é isso? — perguntou Alfredo.

– Isso o que, pai?

– Isso aí… essa camiseta… esse “mito” aí — o pai fez uma espiral com o indicador.

Enquanto servia a salada, Juliana respondeu com naturalidade:

– Nada, pai. Virei bolsominia.

O pai olhou para a mãe procurando um sorriso que admitisse ser mais uma brincadeira das duas.

Não era. Ao invés disso, Jomara perguntou para a filha:

– Tá louca menina? Como assim “virei bolsominia”? Ninguém “vira” bolsominia. A pessoa já nasce com esse problema.

Juliana não se abalou.

Explicou aos pais que já vinha pensando naquela mudança há alguns meses.

– Vocês já ouviram falar em conflitos de geração? Percebi que eu tava muito influenciada por vocês. Eu tenho que ter as minhas próprias opiniões! E quando o presidente foi internado, eu senti um aperto no peito, sabe? Como se ele fosse da minha família.

Os pais continuavam incrédulos, enquanto Juliana comia o espaguete sem se abalar.

– Ah… hoje à tarde eu vou ao Shopping com a Laurinha, tá?

Alfredo tinha perdido o apetite. Colocou os talheres na mesa lentamente e num esforço sobre-humano tentou argumentar com calma:

– Juliana, você não viu que até os bolsominions de raiz estão se questionando? Já viu as pesquisas? Pelo amor de Deus, filha…

– Pai, quem acredita em pesquisa, que mundo você vive!?

– Juliana Maria Sampaio, respeite o seu pai. E você não vai a Shopping coisa nenhuma! — a mãe foi a primeira a elevar o tom.

Dali para frente, a coisa desandou. Uma gritaria só.

– Onde foi que eu errei, meu Deus! Onde? Uma filha bolsominia! — A mãe andava de um lado para outro, com as mãos cobrindo a cabeça, feito uma toca.

O inimigo pode morar dentro de casa, mas o pior é descobri-lo durante o almoço de domingo

Enquanto isso, a filha cortava o pudim e falava para ninguém ouvir:

– Nossa… que drama gente. É só uma posição política. Não tem nada de grave. Mas os pais estavam em absoluto desespero.

Então aconteceu. O pai, descontrado, exclamou:

– Eu preferia ter uma filha drogada a ter uma filha bolsominia!

A frase teve um impacto muito maior do que o pai esperava.

Mãe e filha arregalaram os olhos, incrédulas.

– Alfredo… como assim? Como você pode dizer uma coisa dessas? O pai pensou um pouco e teve que admitir.

– Nossa… o que foi que eu fiz… essa frase poderia ter sido dita pelo… pelo próprio… pelo próprio Bolsonaro!

Mãe e filha responderam com a cabeça, afirmativamente.

Os pais voltaram para a mesa, visivelmente abalados.

– Gente, eu tava só brincando… — Juliana confessou, mas os pais nem deram atenção.

O fato é que Alfredo, a mãe e Juliana estavam desolados pela descoberta de que dentro de cada um de nós existe um bolsominion escondido.

– Passa a salada, por favor. — foi tudo que o pai pode dizer, convencido de que aquela família nunca mais seria a mesma.