Soturna, disputada, complexa, aguardada sem igual, a eleição americana para escolher o novo homem mais poderoso da terra carregava, dessa feita, um ingrediente ideológico adicional: pela primeira vez, os EUA estavam julgando o extremismo doentio e repulsivo do republicano Donald Trump, que passou quatro anos assombrando o mundo — e principalmente seu país — com pregações de ódio, incitação à violência, xenofobia e racismo. Trump foi o retrato maior da anomalia de gestões radicais que têm se alastrado por inúmeros países, Brasil incluído. No inesquecível ciclo de um primeiro mandato, que pareceu uma eternidade, Trump pregou a supremacia branca, a conflagração, a mentira como arma de poder, o negacionismo diante da pandemia, o egocentrismo, o desprezo às minorias, aos imigrantes e a esculhambação sem freio de supostos adversários, completando o repertório com um descarado estímulo ao neonazismo. No conjunto e no todo, o pacotão de retrocessos da era Trump conseguiu por um hiato de tempo estraçalhar, um a um, os pilares regentes de um estado democrático de direito, fundamentalmente o da nação americana que, ao longo de séculos, havia virado referência das liberdades individuais, modelo civilizatório e de congraçamento dos povos. Trump foi um meteoro demolidor, capaz de alterar o ciclo da Terra. Não será esquecido, pelo que fez de pior. Não se absteve de exibir, como traços latentes da personalidade, o machismo, a misoginia, a crueldade contra crianças, pobres e desamparados, em todas as circunstâncias possíveis. Fracassou fragorosamente quando seu povo mais precisou dele, no combate ao coronavírus, legando um país que hoje gera pobreza, desemprego e falência de empresas, mais do que em qualquer outro tempo. No esplendor de suas fanfarronices típicas, o republicano quis colocar em xeque o sistema eleitoral americano, ameaçou autoproclamar-se vencedor na marra e acabou, como previsível, tentando levar a disputa para o tapetão. Característico de mandatários que só aceitam uma única verdade, a sua própria, e não concedem espaço à realidade e aos fatos. Como bem disse o rival Joe Biden, “o poder não pode ser tomado”, e Trump tentou, até o último momento, levar na esperteza, criando arruaças, incitando agitação, a tal ponto que lojas, empresas e casas tiveram de ser protegidas com tapume para evitar a depredação. Em que tipo de mãos os EUA foram parar? Trump avacalhou o elogiado “way of life” americano e pregou o diversionismo como tática de poder. Com um rombo superior a US$ 1 bilhão nos negócios pessoais, tratou a tentativa de se reeleger como tábua da salvação. Deve se afogar em dívidas e segue escondendo o jogo das gambiarras realizadas para não pagar impostos — porque, para chefes de Estado como ele, levar vantagem e cuidar dos próprios interesses despontam no rol de prioridades. Na contenda com o democrata Biden, não faltaram golpes baixos. Nem insultos, ignomínias, descaso a planos de governo. Uma guerra entre dois mundos, entre dois estilos, diametralmente opostos. O democrata Biden tenta arejar a Casa Branca com a volta ao multilateralismo, ao diálogo com organizações e entidades globais. Quer restabelecer compromissos ambientais, de ajuda aos parceiros necessitados, de inserção e cooperação nas agendas comuns. Tudo o que Trump repudia. O tom de disputa, de intolerância e de enfrentamento deve, com Biden, ceder lugar à negociação. Não deixa de ser uma volta à normalidade produtiva do planeta, com o resgate de um protagonismo das causas sensíveis à humanidade. O que Trump adotou de política de obscurantismo e postura preconceituosa reverberou, da pior maneira, em muitos países. No Brasil inclusive. Por aqui, o atual mandatário incorpora e dá contornos próprios à cartilha de seu venerado ídolo. Torcia por ele, abertamente, como quem depende do alterego para sobreviver. Lá, como cá, as gestões beligerantes trataram de ameaçar a harmonia de poderes. Para Trump e Bolsonaro tudo é resolvido no mundo paralelo das fake news, do jogo baixo, do ardil de insinuações para enxovalhar reputações daqueles que julgam “inimigos”. Há uma complexa paranoia em mentes obtusas como as dos dois. Em determinado momento, os chineses são o mal a ser destruído — muito embora, em ambas as nações, a Asia tenha gerado lucros de sobra — e, em outro, o espectro dos “comunistas” aparece como perigo a ser combatido. Eles necessitam dessas invencionices tolas, do clima conspiratório, como do ar para sobreviver. Enfileiram absurdos como cortina de fumaça para dissipar seus reais intentos. Nessa disputa americana, os brasileiros torceram como se estivessem participando da definição de uma escolha de candidato no seu próprio País. E não era para menos. A saída de cena de Trump corresponde, inegavelmente, a um duro golpe no bolsonarismo e no delírio dos métodos e abusos que devem, também por aqui, serem rechaçados mais adiante. O presidente bananeiro, Jair Bolsonaro, que eventualmente também é capaz de atender pela alcunha de capitão cloroquina — tamanha a sanha desmiolada com a qual propagandeia a droga, sem comprovação científica —, foi talvez o único chefe de Estado do mundo a declarar apoio aberto e incondicional ao mandatário americano, antes mesmo de concluída a contagem das urnas. O Brasil deve pagar um alto preço por mais essa barbeiragem. Vale a ressalva que, do ponto de vista das realizações e da capacidade intelectual, os dois “parceiros”, Trump e Messias, guardam distâncias abissais e a própria atitude desse último demonstra a falta de visão e de sensibilidade às consequências do que faz. Bolsonaro, na diplomacia pé de chinelo que montou, trazendo a reboque seu chanceler paquidérmico, Ernesto Araújo, esquece que no plano das relações entre países não se cultivam amizades e sim interesses. São eles que delineiam e pautam os movimentos no tabuleiro da geopolítica mundial. Qualquer chefe de Estado minimamente informado e ciente do papel que lhe cabe, sabe. Pelo visto, menos Bolsonaro, naturalmente. Com Trump fora do jogo, apesar dos subterfúgios imorais que esse tenta aplicar de última hora, o Brasil Bolsonarista terá de se adaptar. A vitória da pluralidade, com mais de 100 milhões de cédulas computadas antecipadamente e com um presidente americano registrando a maior votação de toda a história dos EUA, demonstra que o bom-senso, o equilíbrio e os princípios republicanos voltaram para soterrar a sandice que vigorava até então. Grande epílogo na terra de Tio Sam. Que Trump, expoente dentre os governantes loucos do planeta, seja despachado de volta aos espetáculos midiáticos que já protagonizou, seu legítimo lugar de onde jamais deveria ter saído. No referendo, ele foi demitido. “Fired”, como o próprio dizia no programa televisivo que comandava enquanto animador (para isso ele servia). A resposta inequívoca, sonora, acachapante deixa lições e alertas globalmente. É um bom começo. A depuração segue o curso por muitas paragens. O pesadelo um dia vai acabar e ficará na história para a humanidade aprender e tentar jamais repetir os mesmos erros.