02/12/2021 - 13:10
Ela é há décadas ícone da dança militante no Brasil. Em seu último espetáculo, Lia Rodrigues faz eco às vozes dos indígenas que se sentem ameaçados por “um presidente genocida” e que “não são ouvidos” pela Europa em questões ambientais.
“Encantado”, título do espetáculo apresentado em Paris, pode surpreender. Uma criação baseada no encantamento, em um Brasil sufocado por uma crise política e de saúde?
Mas os “encantados” também são entidades místicas pertencentes à cosmogonia dos povos indígenas no Brasil.
“Eles vivem entre o céu e a terra, na natureza; encantam e desencantam, como mágica”, explica à AFP a coreógrafa cujo espetáculo é apresentado no Théâtre National de Chaillot e depois no Centquatre, dois palcos onde a artista é associada.
Essas entidades “guiaram” a criação do espetáculo em meio a uma pandemia na Maré, o conjunto de favelas do Rio de Janeiro onde, desde 2004, Lia Rodrigues instalou sua companhia, uma escola de dança e um centro de artes.
– Músicas do povo Mbya Guarani –
Em “Encantado”, onze bailarinos da Lia Rodrigues Companhia de Danças desenrolam um grande tapete feito com pedaços de tecido colorido.
Inicialmente nus, eles destacam as teias uma a uma para envolvê-las no corpo ou na cabeça, inventando personagens, antes de embarcarem em uma dança desenfreada e alegre.
“A alegria também pode ser uma forma de lutar, de resistir. É importante não nos esquecermos disso, a nossa luta deve ser alegre”, garante a coreógrafa de 65 anos, que passou pela dança clássica antes de trabalhar nos anos 80 com Maguy Marin, figura da dança contemporânea francesa.
A escolha da música não é trivial: trechos de canções do povo Mbya Guarani, interpretadas em agosto durante a mais importante manifestação indígena já organizada no Brasil pelo reconhecimento de suas terras ancestrais ameaçadas.
Desde que assumiu o poder, o presidente Jair Bolsonaro vem sendo criticado por enfraquecer a fiscalização do bioma amazônico e estimular atividades extrativistas em áreas protegidas. Ele também apoia um projeto de lei que abriria as terras indígenas para a exploração dos recursos naturais.
“Temos um presidente genocida, racista, de extrema direita que está destruindo a Amazônia, os povos indígenas… e os artistas não recebem mais ajuda, é terrível, mas não mata o que são os brasileiros”, frisa Lia Rodrigues, repetindo acusações de seus críticos.
A coreógrafo se inspirou em dois livros: “Torto Arado”, do escritor baiano Itamar Vieira Junior, que se tornou um campeão de vendas durante a pandemia no Brasil e que descreve um mundo de pequenos agricultores e a “ecologia descolonial” de Malcom Ferdinand.
Engajada há quarenta anos sobre questões como a destruição ambiental, injustiça social e passado colonial do Brasil, ela sempre teve consciência – graças a um pai jornalista que a levou para conhecer as favelas pobres – de ser “uma mulher branca de classe média que teve o privilégio de escolher ser artista”.
– “Dizer o que pensamos” –
Segundo ela, os povos indígenas “estão fazendo movimentos extraordinários; devemos ir até eles” e ouvir suas “vozes que estão aí há séculos”.
“Vocês (na Europa) precisaram da voz de uma garota como Greta (Thunberg), essa criança incrível, mas as coisas que ela diz já foram ditas há séculos pelos povos indígenas.”
Segundo ela, é igualmente importante que artistas da América Latina venham “à Europa para dizer o que pensamos e como somos no mundo”.
A artista colabora há vinte anos com a associação Redes da Maré, que está muito envolvida com uma população que vive o terror do narcotráfico, mas também das batidas policiais.
Durante a pandemia minimizada pelo governo, o centro de artes da Maré distribuiu kits de alimentos e higiene para 17 mil famílias e, em três dias, 25 mil pessoas foram vacinadas, a poucos passos do local de ensaio da companhia.
Como artista-cidadã, ela quer assumir suas “responsabilidades, principalmente em um país tão desigual, tão racista como o Brasil”.