01/12/2024 - 17:30
O indiciamento de 25 militares — sendo 12 da ativa — pela Polícia Federal por participação em uma tentativa de golpe de Estado para manter Jair Bolsonaro (PL) na Presidência após a derrota nas urnas em 2022 tem potencial para turvar a íntima relação entre as Forças Armadas e o poder civil.
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Incluídos no pacote de corte de gastos públicos anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, os servidores de Aeronáutica, Exército e Marinha são objetos de duas pautas no radar do Congresso. Neste texto, o site IstoÉ apresenta as discussões e a avaliação de um pesquisador do tema a respeito desse capítulo da história das corporações.
A cronologia do plano, segundo a PF
O que está sendo discutido
Uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para vedar a participação de militares em eleições foi encaminhada nesta semana à CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), responsável por analisar a legalidade de um texto antes de encaminhá-lo ao plenário da Casa.
Em um movimento público para evitar fustigar as tropas, a deputada Caroline de Toni (PL-SC), presidente da comissão, escolheu o deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP), bolsonarista de primeira hora, para relatar a tramitação.
Na função, o parlamentar poderá negociar mudanças na proposta. O texto original estabelece que, para ocupar cargos na administração pública civil, os militares deverão abandonar a ativa da carreira castrense — o que não ocorre atualmente.
Munido pelo resvalo das revelações da PF na imagem das Forças, o PT voltou a trabalhar pela tramitação de uma PEC para alterar o artigo 142 da Constituição, conforme reportou o jornal Folha de S. Paulo.
O 142 prevê que Marinha, Exército e Aeronáutica são “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Em meio às discussões de ruptura institucional, manifestantes e o próprio ex-presidente usaram esse texto para sugerir que as tropas poderiam intervir sobre outras instituições, como um “Poder moderador”. O STF (Supremo Tribunal Federal) rechaçou a tese de forma unânime em março de 2024, o que cessou a discussão parlamentar na ocasião. O deputado Carlos Zarattini (PT-SP, um dos autores da PEC), porém, avaliou que o contexto mudou. “As revelações mostram que houve participação ativa de militares no [plano de] golpe, não só da reserva” , disse ao jornal.
Reação sob análise
Para entender as relações entre esse movimento do Legislativo e as investigações que vieram à tona, o site IstoÉ entrevistou Jorge Oliveira Rodrigues, pesquisador do Gedes (Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
IstoÉ Os indiciamentos e eventuais prisões de militares por envolvimento na trama golpista podem gerar reações políticas à participação das Forças Armadas no poder civil? Há margem para um distanciamento entre essas duas entidades?
Jorge Oliveira Rodrigues As reações já estão ocorrendo, de ambos os lados. No Congresso, a pressão pelo arquivamento do projeto da anistia por partidos como PT e o PSOL encontra oposição na igual defesa da anistia por figuras como [o senador do PL] Flávio Bolsonaro. Ao mesmo tempo, a retomada da discussão da PEC que proíbe a participação de militares da ativa na política é importante.
No Executivo, a opção é por um distanciamento cauteloso, preocupado até, com acenos do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, em apaziguar os ânimos das Forças Armadas – o que, por si só, é um sinal negativo, uma vez que a autoridade civil se fortalece a partir de seu exercício.
Mas o problema é outro. Sequer deveríamos discutir um distanciamento entre militares e o poder civil, pois as Forças são legalmente subordinadas à autoridade civil democraticamente eleita e comandadas pelo presidente da República. Como burocracia de Estado, os militares têm função de assessoria, aconselhamento e execução das deliberações das autoridades políticas. É assim em países como EUA, França e até mesmo na Argentina, onde o histórico ditatorial foi rigorosamente apurado pela Justiça de transição.
No Brasil, vivemos uma anomalia naturalizada: a tutela militar. E isso fica evidente, por exemplo, em editoriais e análises que colocam na conta de um suposto legalismo do Alto Comando do Exército a responsabilidade pela não efetivação do golpe no Brasil. Não questionamos o que se caracteriza, no mínimo, como prevaricação dos generais.
“Assumindo que os generais sabiam das tentativas golpistas e que a elas se opuseram, por que então não denunciaram às autoridades competentes?”
A opção dos generais pela resolução “intramuros” da questão é o retrato da tutela militar. E essa é a real dimensão do problema.
IstoÉ Um deputado bolsonarista foi designado para relatar na PEC, mencionada pelo senhor, que limita a participação de militares na política na CCJ. Qual é a avaliação do senhor a respeito desse projeto? A designação demonstra baixa disposição dos parlamentares em discuti-la?
Jorge Oliveira Rodrigues O Congresso historicamente abriu mão de seu papel nas discussões relativas à Defesa Nacional e às Forças Armadas. Temos, na Câmara e no Senado, comissões de Relações Exteriores e Defesa que não recebem a devida atenção, tanto do ponto de vista da cobertura de imprensa quanto da sociedade como um todo. A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência, por exemplo, sofre de uma opacidade absurda.
“O fundamental seria que os parlamentares assumissem sua parcela de responsabilidade no fortalecimento do controle civil.”
Mas o cenário é outro. Um levantamento do Instituto Tricontinental, publicado em boletim intitulado ‘O lobby dos militares no Legislativo’, dá conta do aparato com que contam os fardados para fazer valer seus interesses junto aos parlamentares. Assim, temos um longo caminho pela frente e isso se expressa na dificuldade de tramitação desta e de outras iniciativas. A indicação do delegado Paulo Bilynskyj para relator da PEC 21/2021 parece indicar que pouco avançaremos.
A PEC, ao proibir candidaturas de militares da ativa nas eleições, é meritória. Busca dar resposta a uma questão que ficou evidente durante o governo Bolsonaro. Ainda assim, vale lembrar que a ocupação de cargos públicos e eletivos por militares da ativa é uma dimensão relevante de um quadro mais amplo, que não é contemplado pela proposta.
Neste sentido, uma outra dimensão a ser acompanhada com atenção é como se portarão os militares eleitos para Câmara e Senado não só diante da PEC, como também do golpismo hoje evidenciado. A julgar pelas manifestações públicas, cerrarão fileira em defesa de seus pares e da corporação.
IstoÉ O STF rechaçou a tese de que o artigo 142 abone as Forças Armadas como um “poder moderador”. As revelações da trama e a própria postura das instituições, sem repudiar os servidores golpistas, mostram que ainda há interpretações do artigo no sentido já descartado?
Jorge Oliveira Rodrigues Eu diria que as interpretações deturpadas desse texto são a regra – tanto no meio civil, quando no militar. Isso fica evidente pelo constante recurso às operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), como a recentemente decretada para os eventos do G20, no Rio de Janeiro. Neste sentido, concordo com o historiador Carlos Ficco que, em entrevista ao podcast ‘O Assunto’, defendeu a necessidade de reformulação total do artigo 142, a fim de evitar qualquer possibilidade de interpretação dúbia.
Também aqui fica evidente a importância do Legislativo, que deve ser protagonista neste debate. Além da PEC 21/2021, outras iniciativas devem ser lembradas e, principalmente, disputadas. Zarattini é um dos poucos deputados ativamente engajados no debate sobre o papel das Forças na democracia, tendo defendido medidas como o fim das operações de GLO e a transferência para reserva de militares que assumissem cargos públicos. Elas não resolvem o problema estrutural dessa relação, mas contribuem para encarar a tutela militar como anomalia.
“O governo Lula não se mostrou engajado nos debates sobre a tutela militar.”
José Múcio, diga-se, cumpre menos a função de ministro da Defesa – voz política do presidente junto às tropas – e mais o papel de despachante dos interesses corporativos das corporações junto à Presidência. Sua permanência no cargo, por si só, é uma opção pela tutela militar. E, como vemos mais uma vez agora, a covardia ou leniência em enfrentar esse problema só terá um resultado: a contratação de novos 8 de janeiro e intentos golpistas.