[posts-relacionados]Imprensa, rádio, cinema e poemas de cordel espalharam o mito romântico de Maria Bonita como a Joana d’Arc da Caatinga, heroína destemida que cavalgou ao lado do cangaceiro Lampião para combater o despotismo dos coronéis e do governo. Intelectuais de esquerda e feministas viram nela precursora da liberdade sexual e símbolo da redenção do povo oprimido. Houve ainda os que denunciaram nas práticas do casal o que de pior o banditismo rural já perpetrou. Estes últimos parecem ter sido mais fiéis à condição de Maria Bonita e outras mulheres que seguiram as falanges de cangaceiros e aterrorizaram o Nordeste entre 1930 e 1940. Se muitas eram estupradas quando crianças e forçadas a entrar no crime, Maria virou cangaceira por convicção. É o que demonstra a jornalista Adriana Negreiros no livro “Maria Bonita — Sexo, violência e mulheres no cangaço” (Companhia das Letras). Ela sustenta que a primeira-dama de Lampião foi produto da selvageria e das superstições reinantes no sertão. A novidade é assestar o cangaço do ponto de vista das mulheres. A autora queria saber por que as narrativas das cangaceiras foram desacreditadas pelos historiadores. “Concluí que se trata da mesma lógica que, até hoje, insiste em transformar vítimas em culpadas”, diz à ISTOÉ.

CANGACEIRAS Integrantes do bando de Lampião: Nenê, Maria Jovina e Durvinha. (Crédito:Divulgação)

Maria foi chamada de Maria Bonita depois de morta. Os jornais consagraram o codinome, ou por analogia ao romance “Maria Bonita” (1914), de Afrânio Peixoto, ou porque os soldados que a mataram a apelidaram assim, espantados com sua beleza. Em vida, era Maria de Déa, filha de Déa e nascida em 17 de janeiro de 1910 em Malhada da Caiçara, norte da Bahia. Com 15 anos, a menina de 1,56 metro, pálida, faladora e dona de uma gargalhada que irritava sua rival Dadá, mulher de Corisco. Descasou-se aos 18 anos e espalhou que sonhava seguir Lampião.

Adília e Sila, integrantes do bando de Lampião (Crédito:Divulgação)

Execuções

Maria Filismina, marcada em brasa pelo ferrador de mulher Zé Baiano com as iniciais “JB” (Crédito:Divulgação)

“Maria foi uma transgressora”, afirma Adriana. “Em pleno sertão do Nordeste dos anos 30, largou o marido, com quem era infeliz, para acompanhar o fora-da-lei mais procurado do Brasil. O esperado de uma mulher insatisfeita com o esposo mulherengo era que se conformasse com a situação. Nesse aspecto, foi uma mulher ‘empoderada’.”

Com o poder adquirido em janeiro de 1930, quando se tornou a primeira-dama do “Rei do Cangaço”, mostrou-se logo conivente com os estupros coletivos, rituais de sangramento, marcação a brasa e assassinatos praticados pelo bando. Costumava arrancar as joias das mulheres capturadas para ferir lóbulos e pescoços. Aprovava que as comparsas adúlteras fossem torturadas e decapitadas. Às vezes os ajudava. “Não se opunha às execuções de mulheres por traição”, diz Adriana. “Chegava até a incentivá-las, como se deu quando Cristina foi morta por suspeita de trair Português.”

“Maria era dona de si, não dava bola para o que diziam dela, mas não era uma feminista” Adriana Negreiros, jornalista
Mas sabia ser clemente. Em 1936, Lampião condenara à morte vinte escoteiros venezuelanos liderados pelo chefe Andrés Zambranos. Maria vistoriava os condenados, amarrados a árvores, quando se deparou com o corpo totalmente nu de Zambranos. “Menino, você é bem bonitinho!”, disse-lhe com um sorriso. Foi ter com o marido e o convenceu a libertar os garotos. Maria declarava que queria virar uma celebridade excêntrica. Tinha 28 anos em 28 de julho de 1938, quando foi capturada e morta com o bando na grota do Angico, em Sergipe. Seu martírio se revelou diferente do de Joana d’Arc na fogueira. Diz a lenda que foi decapitada enquanto tentava convencer o “macaco” (soldado) de que merecia viver. Com a cabeça separada do corpo, continuou a tagarelar por um milésimo de segundo.