Ao subir no trio elético na Avenida Paulista, no último 7 de setembro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), cruzou uma linha. “Ninguém aguenta mais a tirania de um ministro como [Alexandre de] Moraes“, bradou para 42,2 mil pessoas que também se manifestavam contra o relator dos processos contra Jair Bolsonaro (PL) no STF (Supremo Tribunal Federal).
Embora ministro da Infraestrutura de Bolsonaro, Tarcísio era lido por analistas, imprensa e meio político como uma liderança seguramente distanciada das bandeiras mais radicais do ex-chefe — a afronta ao Judiciário em especial. O próprio governador dizia não ser um “bolsonarista raiz“.
Tarcísio em metamorfose
Em uma semana, a percepção de que havia no ex-ministro um opositor menos radical do presidente Lula (PT) se rompeu. No dia 29 de agosto, ao jornal Diário do Grande ABC, Tarcísio prometeu indultar Bolsonaro como “primeiro ato” de seu eventual mandato presidencial.
Nos primeiros dias de setembro, enquanto o julgamento do ex-chefe ocorria no Supremo, foi a Brasília para articular, junto a lideranças do Congresso e o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), o apoio a um projeto de anistia para livrar o ex-presidente da cadeia. No domingo, 7, a estocada em Moraes.

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A soma de gestos respondeu à altura as acusações, em especial do deputado licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e do pastor Silas Malafaia, de que faltavam a Tarcísio atestados de lealdade ao padrinho político e às bandeiras da direita radical. Com essa garantia e Bolsonaro inelegível, o caminho para ser o presidenciável do campo em 2026 se pavimenta.
Por outro lado, a reação de ministros do STF, como o presidente Luís Roberto Barroso e o decano Gilmar Mendes, afastam do governador o verniz do respeito às instituições. Para interpretar os movimentos de Tarcísio e suas implicações, a IstoÉ buscou análises de pesquisadores a partir de quatro perspectivas.
A da atuação política
Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper
“O Tarcísio já se situava no campo da direita radical pela proximidade; se situou, com os gestos recentes, pela retórica; e caminha para se situar pelos atos. Inicialmente, se imaginava que o governador equilibraria os pratos entre a direita moderada e o bolsonarismo, mas o 7 de setembro demonstrou uma estratégia distinta, de demarcação de posição como sucessor de Bolsonaro.
Ainda que haja tempo até as eleições presidenciais, seus gestos o deixam mais distante de conquistar o eleitor moderado. Por isso, a esquerda agradece e o presidente Lula recebe esse grupo de braços abertos, mesmo com as decepções acumuladas durante o governo.
No pós-redemocratização, São Paulo não havia tido um governador da direita radical. Houve perfis, como Orestes Quércia e Fleury Filho, que flertaram com a direita; depois tucanos, como Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra, com um perfil de centro; agora, uma liderança bolsonarista. Isso deixa o campo, para toda a moderação, mais restrito para a disputa de 2026 e abre espaço, lamentavelmente, para uma reedição da polarização que vimos em 2018 e 2022. A esperança é que esses polos estejam dissecados até 2030“.
A do saldo eleitoral
Renato Dorgan, presidente do instituto de pesquisas Travessia
“A articulação pela anistia e a crítica frontal ao STF refletem uma estratégia mais política do que eleitoral de Tarcísio. Ao fazer isso, o governador ganha a confiança do bolsonarismo mais radical, faz Malafaia e os filhos de Bolsonaro abaixarem as armas e demonstra lealdade ao ex-presidente, reduzindo as possibilidades de uma candidatura com o sobrenome e abrindo espaço para a formação de uma coalizão ao seu redor.
É uma estratégia ousada, porque ela gera uma perda eleitoral de um eleitor centralizado e de voto alternado, a curto prazo. Aquele que avalia como “regular” o governo Lula e deseja um candidato mais moderado do que Bolsonaro, mas espera respostas a uma economia que não decola e uma sensação crescente de insegurança nas grandes cidades.
Acontece que, ao mesmo tempo, Tarcísio tem potencial para reconquistar rapidamente esse eleitorado se for apresentado como a alternativa viável à falta de melhoria no custo de vida e ao problema de segurança pública, que ainda carecem de respostas”.

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A da alternativa à direita
Lilian Sendretti, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e do Cem (Centro de Estudos da Metrópole)
“Mesmo antes de confrontar Moraes, Tarcísio trabalhava na agenda da radicalização política, dada sua validação e omissão em relação aos discursos radicais do bolsonarismo, identificáveis desde sua participação no governo.
O papel das lideranças políticas pela radicalização pode se configurar tanto pelos discursos quanto pela omissão; o governador, que estava no segundo grupo, migrou para o primeiro no 7 de setembro. A agenda de oposição ao STF é preponderante para essa identificação, porque unifica o bolsonarismo pós-poder em torno das narrativas de vitimismo, perseguição e da teoria da conspiração de que há um complô no Judiciário.
Há uma consolidação de que, tanto do ponto de vista da força eleitoral quanto da presença institucional, essa caminha para se tornar uma força única na direita. Neste cenário, políticos serão pressionados a aderir a discursos radicais sem que a direita democrática possa confrontá-lo. O Tarcísio busca se galvanizar neste cenário”.
A da consolidação no bolsonarismo
Isabela Kalil, antropóloga e professora da Fesp-SP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo)
“Há um relativo consenso de que Tarcísio está na direita radical. O movimento que o levou a isso é muito similar ao que o Bolsonaro fez, em 2021, quando prometeu não respeitar mais as decisões de Moraes. O critério não é necessariamente a oposição ao STF, mas a deslegitimação e continuidade do golpismo constituídas na articulação pela anistia — que, na prática, configura desrespeito a decisões judiciais.
O governador representa um bolsonarismo de baixa intensidade. Ainda que não seja vocal ou explícito como o ex-presidente, ele pode aderir a posições de erosão democrática. Não significa dizer que seja uma posição menos perigosa do ponto de vista da democracia, mas que ele opera numa lógica menos óbvia e explícita.
Em uma década, Bolsonaro alterou o campo da direita a ponto de normalizar práticas antes inaceitáveis e, com os resultados eleitorais, hegemonizá-lo. O ex-presidente é e deve permanecer como uma liderança incontornável, o que é muito ruim para a democracia brasileira, porque restringe o espaço para lideranças democráticas da direita.
Para as eleições de 2026, não consigo ver espaço para uma direita democrática, até porque os atores políticos desse campo hoje estão divididos entre o bolsonarismo, de alta ou baixa intensidade, e a coalizão de Lula, casos do vice-presidente Geraldo Alckmin e da ministra Simone Tebet”.