PREPOSTO Cumpridor de ordens, Braga Netto já decepcionou boa parte de seus pares ao aceitar o cargo no Ministério da Defesa (Crédito: Ricardo Moraes)

O presidente fez, na última semana, a manobra mais ousada de sua gestão visando capturar as Forças Armadas para seu projeto político e usá-las como instrumento para um regime autoritário. A demissão do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa, segunda-feira, 29, foi o movimento decisivo dessa estratégia macabra. Não se trata apenas de uma mera reforma na equipe de primeiro escalão do governo, mas de mais um tentativa de concentrar o poder e fustigar a democracia. Insatisfeito com Azevedo por não receber apoio explícito das Forças Armadas, Bolsonaro decidiu substituir o general por um aliado que lhe permita ter mais controle sobre os militares — o general Walter Braga Netto, até então na Casa Civil — e, sobretudo, aumentar sua influência direta dentro dos quartéis. A mudança na Defesa provocou um efeito dominó, com a demissão dos comandantes das três forças: o general Edson Leal Pujol, do Exército, o almirante Ilques Barbosa Júnior, da Marinha, e o brigadeiro Antônio Carlos Bermudes, da Aeronáutica, que renunciaram. Foi a primeira vez, desde o fim da ditadura, em 1985, que os três chefes abdicaram de suas funções conjuntamente. É também a maior crise militar desde 1977, quando o presidente Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército, Sylvio Frota, que tentou dar um “golpe dentro do golpe”.

ALINHAMENTO Bermudez (esq.) pediu demissão (Crédito: Isac Nóbrega/PR)

As intenções de Bolsonaro, abalado pela perda de popularidade, cada vez mais acuado pelos opositores e desmoralizado pelos próprios erros, são as piores possíveis. Azevedo e Silva foi obrigado a colocar o cargo à disposição e, em uma carta entregue ao presidente, deixou nas entrelinhas o motivo da saída: tentou preservar as Forças Armadas como instituições de Estado. Para interlocutores próximos, disse, também, que saiu porque não queria repetir a experiência que viveu em maio de 2020. Na ocasião, na primeira tentativa de golpe ensaiada pelo governo, grupos bolsonaristas fizeram manifestações pedindo uma intervenção militar e atacando o STF. Azevedo e Silva fincou pé e defendeu a isenção política das Forças Armadas. É tudo que Bolsonaro não quer. Ele quer chamar o Exército de “seu”, quebrar a hierarquia e usá-lo para apoiar medidas repressivas.

Para aliados, o mandatário tem dito que quer um ministro disposto “a meter o pé na porta” por ele, caso seja necessário. Braga Netto é considerado um cumpridor de ordens e pode cuidar desse serviço. O problema é que as maquinações golpistas do presidente não encontram eco entre os militares mais influentes e ele não se conforma com isso. Bolsonaro queria, desde o ano passado, que Azevedo e Silva lhe entregasse a cabeça de Pujol, com quem estava incomodado, entre outras coisas, por usar máscara, respeitar o isolamento social e seguir a ciência. Em novembro do ano passado, quando o militar manifestou em uma live, sensatamente, o interesse de descolar o Exército da política, a corda se rompeu. “Não queremos fazer parte da política, muito menos deixar ela entrar nos quartéis”, disse. Na época, 9 dos 23 ministros do primeiro escalão do governo usavam farda, centenas de oficiais da ativa se familiarizavam com a política miúda da Esplanada e o governo já tinha mais de 8 mil militares, boa parte da ativa, ocupando cargos de confiança. O então ministro da Defesa não seguiu as orientações do chefe e frustrou o projeto de Bolsonaro: deixou claro que não abriria as portas dos quartéis para ele. “Bolsonaro disse que queria alguém mais simpático a ele no comando do Exército. E que gostaria de ver maiores manifestações de apreço”, relatou um oficial com elevado cargo no Ministério da Defesa para justificar a saída de Azevedo e Silva.

TENSÃO O almirante Ilques Barbosa bateu na mesa durante reunião com Braga Netto (Crédito:Eraldo Peres)

Na segunda-feira, o general Pujol, o almirante Barbosa e o brigadeiro Bermudez se reuniram para discutir a entrega conjunta de seus postos. “Isso é uma reação corporativa às invectivas do presidente”, avaliou um general influente da reserva. Todos eles voltaram a se encontrar na manhã seguinte, desta vez, junto com o novo ministro da Defesa, Braga Netto. Os três chegaram à sede da pasta, em Brasília, com o pedido de demissão assinado, mas estavam dispostos a ouvir eventuais acenos do novo chefe do ministério — o que não aconteceu. Em uma reunião tensa, os membros do Alto Comando deixaram claro a Braga Netto que jamais dariam um passo para contrariar a Constituição. O mais exaltado no encontro foi o almirante Barbosa, que protagonizou momentos que, segundo relatos de participantes, beiraram a insubordinação. Indignado com a situação, ele chegou a bater na mesa. Pouco depois da reunião, o Ministério da Defesa emitiu nota comunicando a substituição dos três comandantes.

Cumpridor de ordens

O presidente optou por Braga Netto por encontrar nele o perfil que precisa para conseguir controlar as Forças Armadas: um cumpridor de ordens. Um militar cuja máxima é “missão dada é missão cumprida”. E Braga Netto, pelo jeito, não vai desapontar Bolsonaro, mas já decepcionou boa parte de seus pares ao aceitar a quebra de hierarquia e agir como preposto do chefe, como fazia o general Eduardo Pazuello, recém-demitido do Ministério da Saúde. Na avaliação de oficiais influentes, Netto jogou sujo com os três comandantes das forças e depois da renúncia coletiva tratou também de demiti-los por “ordem do presidente”. Além disso, aproveitando a proximidade da data, seu primeiro ato foi assinar uma ordem alusiva ao dia 31 de março de 1964. Segundo ele, o golpe, que chama de “movimento” e completou 57 anos, “deve ser compreendido e celebrado”. Em outras palavras, Braga Netto trata de normalizar a ditadura, cuidando da parte simbólica. A renúncia coletiva dos comandantes, porém, dá um sinal claro do pensamento reinante entre os militares da ativa: Bolsonaro é desequilibrado e, como sempre fez na carreira militar, trata de desafiar a hierarquia e subverter a ordem.

Outro fator que pesou na demissão de Azevedo e Silva foi uma entrevista concedida pelo general Paulo Sérgio, autoridade máxima da saúde no Exército. Sérgio comparou as ações da força no combate à pandemia às de Bolsonaro durante o enfrentamento da doença no Brasil e fez questão de citar como chegou a resultados bem melhores, com velocidade de transmissão e taxa de letalidade bem menores do que na população em geral. O general passou a fórmula: adoção de lockdown, suspensão de eventos e campanhas massivas de uso de máscara e a favor do isolamento social. Ou seja: o oposto a tudo o que vem defendendo Bolsonaro desde o ano passado. O presidente não gostou e atribuiu o conteúdo à inércia de Azevedo, arranjando um novo argumento para sua demissão. A expectativa de Bolsonaro era que a Defesa e o Comando do Exército tomassem providências para repreender o general e exigir que defendesse o uso da cloroquina e o tratamento precoce.

QUARTÉIS Bolsonaro tenta quebrar a hierarquia e politizar as Forças Armadas (Crédito:Marcelo Régua)

Mania pessoal

“As Forças Armadas têm suas atribuições estabelecidas pela Constituição e são instituições de Estado, não de governo. Elas podem apoiar políticas públicas e não apoiar o governo. Não são ferramentas de uso em jogo de poder”, criticou o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro. Para o general, não havia nenhum motivo plausível para a troca do ministro e dos três comandantes, decisão que ele atribui a uma “mania pessoal” do presidente. Para Santos Cruz, a forma como Azevedo e os comandantes deixaram o governo foi um desrespeito e uma ofensa aos militares e poderá ter um efeito inverso ao pretendido. Em vez de ganhar apoio, Bolsonaro pode estar dando fortes argumentos para acelerar um processo de impeachment e abrir caminho para que o vice-presidente, general Hamilton Mourão, assuma o poder. Militares da reserva já observam que o mandatário tem parecido mais taciturno e isolado. “Embora sejam normais, reformas ministeriais não têm nada a ver com comandantes militares, que não fazem parte dessa primeira camada política”, diz Santos Cruz. Outro influente oficial da reserva, o general Sérgio Etchegoyen, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Temer, considerou que a mudança no Ministério da Defesa não é mais “do que uma troca de comando, uma prerrogativa do presidente”. Acrescentou que dificilmente os militares embarcarão em aventuras. “O Exército vai se manter como sempre esteve esse tempo todo: longe de qualquer papel político”, disse.

DOIS TEMPOS O ministro Augusto Heleno era ajudante de ordens de Sylvio Frota (Crédito:Divulgação)

Dono de um discurso negacionista e fazendo pouco caso do coronavírus, Bolsonaro acionou o STF para tentar anular medidas restritivas tomadas por governadores nos estados, por considerá-las, nas suas palavras, uma afronta à liberdade individual. É uma impostura. O presidente na verdade quer ter o controle absoluto sobre as medidas na pandemia. Chegou a sugerir a apoiadores que poderia decretar estado de sítio — instrumento previsto na Constituição em que o presidente pode suspender por 30 dias os poderes do Legislativo e do Judiciário em casos extraordinários. Igualmente grave, o presidente costuma dizer que vai contar com o apoio do “seu Exército”, tratando as Forças Arnadas como sua guarda pretoriana. Além de ter sido derrotado no STF e não impedir as ações locais adotadas pelos gestores estaduais, Bolsonaro provocou reações negativas de todos os lados. Da parte do Supremo, foi obrigado a dar explicações ao presidente da Corte, ministro Luiz Fux, sobre cogitar o decreto de estado de sítio. Do lado militar, viu-se abandonado pelas Forças Armadas, que se mantiveram em silêncio como forma de protesto e continuaram seguindo os protocolos de combate à Covid-19.

Para atingir seus objetivos autoritários, Bolsonaro tenta fazer uma ação articulada, algo que está definitivamente fora de seu alcance intelectual. Ao mesmo tempo em que instala a cizânia nas Forças Armadas, ele busca um marco legal para agir de maneira tresloucada, colocar militares na rua e criar um clima de caos. Para isso conta com seus aliados na Câmara. Ao mesmo tempo em que mudava toda a cúpula militar, Bolsonaro fez outro claro movimento golpista: deslocar sua base com o objetivo de aprovar do Projeto de Lei 1074/2021, da chamada Mobilização Nacional. O líder do PSL na Câmara, Major Vitor Hugo (GO) tentou colocar o projeto em pauta em regime de urgência. Se aprovada, a norma autorizaria que, diante da crise, o presidente interferisse na produção privada e controlasse as PMs, além mobilizar das Forças Armadas. O projeto autorizaria Bolsonaro a tirar a responsabilidade de governadores e prefeitos pelas medidas restritivas. Parlamentares da oposição classificaram a iniciativa de “tentativa de golpe” e “flerte com o autoritarismo”. O líder da oposição, Alessandro Molon (PSB-RJ), disse que a PL “aponta para um projeto autoritário, o que não aceitaremos”.

REACIONÁRIO Opositor da abertura, Frota foi demitido por Ernesto Geisel (Crédito:Divulgação)

Interlocutores da Presidência têm afirmado que a troca de Azevedo e Silva é também um recado ao STF, já que Bolsonaro demitiu alguém bem quisto pela Corte. O general era próximo do Supremo e conhecia o tribunal como poucos, pelo fato de ter sido assessor do ministro Dias Toffoli, antes de assumir o Ministério da Defesa. Não à toa, sua demissão preocupa os ministros do STF. Azevedo e Silva tentou tranquilizar os ânimos na Corte. Na terça-feira, 30, conversou com Fux e deixou transparecer que sua saída tinha a ver com o autoritarismo de Bolsonaro de tentar politizar as Forças Armadas. Apesar da baixa, pessoas próximas ao presidente do STF afirmam que Fux ainda acredita na boa relação entre Judiciário e Executivo com a escolha de Braga Netto. Outro ministro que se manifestou foi o decano do tribunal, Marco Aurélio Mello. “As Forças Armadas não estão aí para dar apoio ao governo. Elas são uma instituição de Estado”, afimou. O general Francisco Mamede de Brito Filho disse que é hora de abandonar o silêncio no meio militar. “A sociedade está tensa e o silêncio gera desconfiança”, disse.

“Azevedo e Silva está certíssimo. Assim como os comandantes. O presidente pode demitir e nomear quem ele quiser e quando quiser. Mas não pode exigir apoio político das forças para o seu governo”, disse um general que era um dos maiores aliados de Bolsonaro na ala militar. “Mesmo trocando todos os comandantes e o ministro, continuará sem o que quer. Está se desgastando à toa.” O nome escollhido para substituir Pujol no comando do Exército foi o general Paulo Sérgio Nogueira, chefe do Departamento de Pessoal do Exército. Para substituir Barbosa no comando da Marinha, Braga Netto escolheu o almirante Almir Garnier Santos, atual secretário-Geral do Ministério da Defesa. Na Aeronáutica, o novo comandante será o tenente-brigadeiro Baptista Júnior.

Bolsonaro escolheu a proximidade da data dos 57 anos do início da ditadura para abrir seu pacote de maldades, mas tudo indica que suas pretensões serão frustradas. O mais provável é que seja um tiro pela culatra. A nova crise que o presidente criou a partir da mudança da cúpula militar remete ao fim da ditadura, em 1985, quando o alto oficialato tomou a mesma iniciativa por causa da mudança do regime. Outra referência histórica para a situação atual é a demissão pelo presidente Ernesto Geisel do ministro do Exército, Sylvio Frota, maior opositor da abertura democrática, anticomunista doente (achava que o próprio Geisel era comunista) e referência política de Bolsonaro. Frota foi exonerado depois de tentar um golpe. O elo direto de ligação entre as duas crises é o general Augusto Heleno, atual ministro do GSI. Heleno, que anda sumido, era o ajudante de ordens de Frota e também foi exonerado na ocasião. Para Bolsonaro, o general golpista, que propunha uma saída ainda mais autoritária para um regime já fechado, é uma inspiração. O atual presidente busca poderes plenos e apoio irrestrito dos militares para espezinhar a democracia brasileira. Mas dificilmente terá sucesso.

Reação indignada