A fábula é tão antiga quanto governantes autoritários levarem os seus países ao caos: O escorpião pede ao sapo que o deixe ir em suas costas para atravessar um rio; o sapo responde que tem receio que ele, o escorpião, lhe dê uma picada, o que significaria a morte. O escorpião argumenta que jamais faria isso, porque, como não sabe nadar, ele morreria afogado. O sapo concorda, mas, em meio à travessia, é picado. Desesperado pergunta:

— Por que você me picou? Vamos morrer!

— É da minha natureza.

Fica fácil compreender: o sapo é o país, o escorpião é o governante. Essa espécie de “natureza” tem sido amplamente estudada pela psiquiatria ao longo de décadas, não apenas no que se refere a líderes e presidentes, mas nas pessoas em geral que apresentem os seguintes componentes psíquicos, sociais e de comportamento: ausência de empatia, rasa racionalização diante da tragédia de outro, atitudes projetivas e nenhum remorso. Tal classificação foi feita pelo psiquiatra e filósofo alemão Kurt Schneider, em 1923, em sua revolucionária tese no campo da medicina, “Die Psycgopathischen Persönlichkeiten” (“Personalidades psicopáticas)”. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, pelo seu proceder diante do drama da pandemia que já matou mais de trezentos mil indivíduos, pode ser alocado nos itens citados.

“A morte de uma pessoa é uma tragédia; a morte de milhões é uma simples estatística” Joseph Stalin, tirano da ex-URSS, responsável pela morte de milhões de camponeses (Crédito:Divulgação)

Falta de empatia e rasteira e gelada racionalização: “Todos têm de morrer um dia”; “País de maricas”; “O que querem que eu faça? Sou Messias mas não faço milagres”; “Até quando vai essa choradeira?”; “Mimimi”; “Frescura”. Essas falas, também segundo a “Classificação Internacional das Doenças” (OMS, CID-10 e CID-11) e o “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders” (Associação Americana de Psiquiatria), apontam para provável psicopatia (etimologicamente, do grego: psykhe = mente, pathos = doença). Nesse grave e doído momento em que, no Brasil, médicos desmontam estetoscópios para usarem as canículas como tubos de oxigênio, devido à falta de insumos, o desdém, a irresponsabilidade, o senso de humor perverso tendem a indicar uma personalidade psicopática — o mesmo sentido de condutopatia, expressão tecnicamente mais exata pela sua clareza, utilizada pelo psiquiatra forense Guido Palomba, um dos mais conceituados do Brasil. Recentemente, escreveu Palomba em um de seus artigos: “Schneider observa que são carentes de compaixão, toscos em regra, anestesiados de senso moral. Frente ao sofrimento alheio, à morte de milhares de pessoas, não medem palavras (…). São, por todo o quadro, de periculosidade social. Nada os detêm, salvo reprimenda enérgica, judicial e legal”.

No final da semana passada, Bolsonaro preencheu com todas as letras o quesito “nada os detêm”: “Só Deus me tira daqui”, bravateou ele. Esqueceu, como sempre, que o mesmo povo que o colocou no cargo poderá tirá-lo… e a voz do povo, presidente, é a voz de Deus, sabia? E quem diz “só Deus” me faz determinada coisa, é porque, numa análise psicanalítica pela metodologia de Sigmund Freud ou de Jacques Lacan, se julga o próprio Deus. “O Brasil paga alto preço por ter um líder despreparado e psicopata no comando de uma Nação”, disse o governador de São Paulo, João Doria, incansável em fazer a ciência triunfar sobre o obscurantismo, em entrevista à CNN norte-americana.

Igual a Fortunato

Ao longo das décadas, a neurociência aliou-se à psiquiatria no estudo da psicopatia, e, por meio de ressonância magnética funcional, descobriu-se interrupções nas conexões do córtex pré-frontal com o sistema límbico, conexões que, intactas, modulam razão, comportamento social, emoções e sentimentos. Essa disfunção torna a doença um mal orgânico e não passível de tratamento — mas o psicopata, geralmente, não tem déficit cognitivo, sabe o que faz. Os especialistas jogam com o avançar da idade para ocorrer a remissão. No caso de Bolsonaro, no entanto, que acabou de completar 66 anos, até essa regra virou exceção. A não conectividade do lobo frontal com o sistema límbico pode resultar de gravidezes difíceis, e a gestação de Bolsonaro foi bastante intranquila — daí o seu nome Messias, dado-lhe pela mãe em agradecimento a Deus pelo fato de o filho ter nascido. Vamos, agora, às outras duas características básicas de psicopatia: a projetividade e a ausência total de remorso. Durante toda a pandemia, Bolsonaro transpirou negacionismo. Nesse instante, quando se vê isolado, projeta a culpa pela tragédia no Congresso, governadores, prefeitos e STF. Lembrando Schneider, existe a “psicopatia fanática”, na qual seus portadores valorizam de forma estratosférica a si mesmos. Por isso são projetivos.

O capitão é um predador político, inadequado desde os tempos da ativa, a ponto de ser expulso do Exército — essa inadequação, muitas vezes, mascara o Transtorno da Personalidade Antissocial, outra denominação de psicopatia. O presidente precisa, para o bem da saúde mental dos brasileiros, sair do cargo. Renunciar significaria remorso, coisa que ele não tem. Resta somente o impeachment. Começou-se esse texto com uma fábula, termina-se com um conto: “A causa secreta”, de Machado de Assis. Nele, o personagem Fortunato abre um hospital apenas porque lhe dá prazer ficar olhando o sofrimento dos pacientes. Há diferença entre Fortunato e quem elogia torturador? O conto é de 1885. Parece ter sido escrito hoje no Palácio do Planalto.