Perspectivas 2023 – Brasil

Sob Jair Bolsonaro, Brasília tornou-se disfuncional. Com a postura por vezes errática ou quase sempre omissa do capitão na condução do País, o Congresso criou para si superpoderes, escanteando a Constituição, o Supremo assumiu um protagonismo inédito e os militares saíram dos quartéis para ocupar um espaço que não lhes convêm. O caos colocou autoridades em contraposição, rendeu episódios de tensão e impulsionou a divisão da população. Findada a era do retrocesso, a reconstrução política será árdua. O processo vai exigir um trabalho a várias mãos, balizado pela retomada de uma separação harmônica dos Poderes. Deste arranjo, depende a pacificação nacional, uma das principais promessas reiteradas por Lula na posse presidencial. “A ninguém interessa um País em permanente pé de guerra”, sublinhou o petista, no Parlatório do Palácio do Planalto, no último domingo, dia 1º.

O equilíbrio passa pelo Congresso, que, em 2023, vai apostar na agenda econômica e engavetar pautas de costumes. O PT acertou ao não patrocinar um nome para disputar a presidência da Câmara contra Arthur Lira em fevereiro e arriscar um descompasso logo na largada da gestão. Goste-se ou não, o deputado é hegemônico no Parlamento e comprovou isso ao preservar o apoio de 19 partidos, que somam 489 dos 513 deputados, mesmo após o Supremo Tribunal Federal declarar as emendas de relator inconstitucionais. “O fim do orçamento secreto não significa que Lira perdeu influência ou instrumentos para exercê-la (R$ 9,7 bilhões do total das emendas de relator passaram para o controle dos ministérios, e a verba pode ser usada em negociações políticas). A ascendência dele sobre a Câmara é algo importante para Lula, que assumiu com um número pequeno de deputados para chamar de seus”, pontua o cientista político Creomar de Souza. O professor não crê em uma “hostilidade” do congressista frente a Lula, apesar de ter sido um dos principais aliados de Bolsonaro. “Lira é, antes de tudo, um pragmático.”

EXPERIÊNCIA Como líder no Senado, nada como a capacidade de articulação de Jaques Wagner (Crédito:Waldemir Barreto)

Para cuidar diretamente da articulação com Lira em 2023, Lula escalou para a liderança do governo na Câmara um nome de confiança: José Guimarães, que coordenou as campanhas dele à Presidência em 1989 e 2002. O veterano tem desenvoltura no Congresso — sempre dialogou bem com nomes de todos os espectros políticos, do Centrão à esquerda. No Senado, o presidente escolheu para o posto equivalente Jaques Wagner, nome mais experiente do PT. A ideia é que ele atue pelo equilíbrio, uma vez que o líder da gestão no Congresso, Randolfe Rodrigues, adota uma postura altamente combativa.

COMBATIVO Novo líder do  o governo no Congresso, Randolfe é mais explosivo (Crédito:Roque de S)

A cúpula do Senado, aliás, tende a ser ainda mais próxima do Planalto, uma vez que Rodrigo Pacheco segue como favorito para a disputa pela presidência. Na posse, o pessedista fez afagos a Lula e a Geraldo Alckmin. “Há um sentimento de renovada confiança, por estarmos diante de dois homens públicos experientes, capazes e habilidosos”, comentou. Pacheco pode concorrer contra Rogério Marinho — a candidatura do ex-ministro, contudo, é vista como uma tentativa do PL de abrir espaço para uma barganha por colegiados de destaque, como a Comissão de Constituição e Justiça, sobretudo após Bolsonaro fugir para os EUA e ignorar as negociações em curso. O partido refuta. “Marinho é a alternativa se quisermos restabelecer a ordem, independência e o tamanho do Senado”, diz o líder da sigla na Casa, Carlos Portinho. Se confirmada, a reeleição de Pacheco soará como boas novas ao Supremo. A vitória de um parlamentar do PL poderia reacender entre senadores e militantes extremistas a cobrança pela abertura de processos de impeachment contra ministros vistos como algozes por Bolsonaro, a exemplo de Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso.

NEGOCIADOR O deputado  José Guimarães tem um perfil de grande articulador na Câmara (Crédito:Divulgação)

Autocontenção

Sob a batuta de Rosa Weber, o STF é outra peça primordial no processo de pacificação nacional. Ministros ficaram sob intensos holofotes nos últimos quatro anos por barrarem, com decisões monocráticas, normativos inconstitucionais e ilegais assinados por Bolsonaro, como os decretos armamentistas. Além disso, irritaram o Legislativo ao fazerem-no cumprir a Constituição, como no momento em que houve a determinação pela instalação da CPI da Covid, e ao estabeleceram, de seus gabinetes, sem a discussão colegiada, o afastamento do mandato e a prisão de parlamentares, como Wilson Santiago e Daniel Silveira.
O Supremo, no entanto, já sinalizou disposição em apaziguar os ânimos. Pela autocontenção, no apagar das luzes do ano passado, o Tribunal mudou o regimento interno para restringir as decisões individuais e, assim, reduzir o espaço para as acusações de ativismo judicial. A tentativa do STF de deixar o papel de protagonista, porém, não significa que a Corte se omitirá diante de episódios graves, como as manifestações que buscaram evitar a posse de Lula e seguem reivindicando uma intervenção militar. Alexandre de Moraes, segundo pontuam ministros, permanecerá com o respaldo da Corte nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos.

No trato com o Planalto, a relação deve ser serena. O ministro da Justiça, Flávio Dino, tem excelente trânsito no tribunal e o advogado-geral da União, Jorge Messias, já conduziu um tête-à-tête com Rosa Weber na última quarta-feira. “Foi uma visita de cortesia para apresentar a nova equipe que vai estar à frente da atuação e reafirmar o compromisso de uma agenda firme de redução das controvérsias e de litígio, de ampliação da conciliação”, contou. Apesar dos olhos centrados no STF, a autocontenção não deve ser cobrada somente de ministros. As Forças Armadas, que ganharam espaço na gestão de Bolsonaro e demonstraram satisfação em sentir mais uma vez o sabor do poder, precisam se contentar com o retorno aos quartéis e com as competências que a Constituição lhes confere. O ministro da Defesa, José Múcio, busca uma transição livre de polêmicas. Sinalizou a aliados, por exemplo, que não fará trocas bruscas em cargos comissionados da pasta para evitar que os movimentos sejam interpretados como perseguição política a quem trabalhou na gestão Bolsonaro.

EQUILÍBRIO Rosa Weber determinou medidas para aumentar o peso do colegiado nas decisões do STF (Crédito:Fellipe Sampaio/SCO/STF)

Bombardeado por Bolsonaro e seus asseclas, o TSE, presidido por Moraes, quer manter aceso o debate sobre o combate à difusão de informações falsas nas redes. A Corte dispõe de um projeto contínuo, o Programa de Enfrentamento à Desinformação, que conta com uma página para o recebimento de denúncias sobre fake news relacionadas à Justiça Eleitoral e às urnas eletrônicas e um grupo de checagem de dados. Moraes, contudo, quer ir além. O ministro incentiva o debate, no Congresso, de projetos de lei para responsabilizar e punir tanto cidadãos como big techs pela circulação de inverdades que buscam enfraquecer a democracia.

Fake news

Em paralelo, os crimes cometidos nas eleições de 2022 serão apurados. O corregedor-geral-eleitoral do TSE, Benedito Gonçalves, tende a dar celeridade a uma ação que mira Bolsonaro e mais 80 pessoas físicas e jurídicas por um “engendrado ecossistema de desinformação” que buscou fortalecer a candidatura do capitão a partir de notícias falsas contra adversários políticos. Na petição, os advogados de Lula defendem a quebra dos sigilos bancário, telefônico e telemático de aliados do ex-presidente para que o TSE apure se eles custearam a produção e publicação de conteúdo nas redes sociais para favorecer o ex-mandatário.

DEMOCRACIA O ministro Alexandre de Moraes estimula o debate de projetos de lei no Congresso para o combate às fake news (Crédito:Divulgação)

Mas a reorganização institucional no Congresso e em tribunais superiores e a punição de criminosos, por si só, não resultará na tão desejada pacificação nacional. Para cientistas políticos, a chave é a economia e a redução da desigualdade social. “A pacificação virá quando a economia acelerar, quando os pobres, a classe média e os ricos estiverem ao menos parcialmente satisfeitos. Claro que sempre haverá células extremistas. Nunca haverá homogeneidade. O que temos que buscar para a redução da polarização é o sentimento de pacificação, que advirá do crescimento econômico e de políticas sociais e, consequentemente, do aumento da popularidade do governo”, anota Adriano Oliveira, professor da Universidade Federal da Pernambuco. Ou seja, esta não é uma batalha de Lula, mas de todo o Brasil.

CORREGEDOR
Benedito Gonçalves, do TSE, pode determinar a quebra de sigilos de aliados de Bolsonaro (Crédito:Divulgação)