É sempre bom quando o chefe de uma instituição procura explicar sua filosofia de trabalho, mais ainda se estiver buscando uma recondução ao cargo. Augusto Aras fez isso em um artigo publicado hoje pela Folha de S. Paulo. Infelizmente, o artigo é malandro, porque tenta disfarçar de escolha técnica o que na verdade é escolha política. Explico.

O artigo pode ser dividido em três partes. A primeira, a mais longa, diz em síntese que o PGR deve sempre se ater ao discurso jurídico, ou seja, não deve buscar protagonismo “no dia a dia da retórica política”, sobretudo porque detém, de maneira exclusiva, um poder e tanto: o de processar por crimes comuns o presidente da República, os senadores e os deputados.

Na verdade, Aras vai um pouco além e diz que esse exercício de autocontenção deve ser feito não só por quem ocupa a sua cadeira, mas por todo o Ministério Público, que teria ao longo dos anos cometido certos “excessos e violações” à Constituição e à sua própria lei orgânica.

Na segunda parte do artigo, Aras defende o seu legado na PGR. A maior parte do que ele menciona são questões internas, exceto os processos contra pessoas com prerrogativa de foro (políticos), que teriam recuperado centenas de milhões de reais.

O último parágrafo compõe a terceira parte do texto. Aras diz que “o Brasil vivem um momento em que todas as cordas estão esticadas” e que nesse cenário cabe ao Ministério Público agir com “sobriedade, sabedoria e contra o excesso de ativismo”.

Parece uma retomada do argumento inicial, que o PGR precisa se ater às questões jurídicas, correto? Mas não é. Essa preocupação com cordas esticadas é puramente política. Não há nada na Constituição ou no Código Penal dizendo que essa deve ser uma preocupação do Ministério Público.

Aras está tentando confundir um PGR que se finge de morto diante das transgressões das autoridades públicas, para supostamente não acirrar conflitos, com um PGR que se atém à letra da lei para tomar suas decisões. Essa é a sua malandragem.

Vamos ficar no exemplo mais recente do comportamento de Aras. A ministra Cármen Lúcia pediu que ele se manifestasse a respeito de uma notícia-crime apresentada por parlamentares contra Jair Bolsonaro, respeito daquela live escalafobética em que o presidente disse que não tinha provas de erro no funcionamento das urnas eletrônicas, mas mesmo assim assegurou que, por causa delas, as eleições de 2022 serão fraudulentas.

Aras levou nove dias para redigir um parecer, que não se ocupou de mandar à ministra. Só fez isso quatro dias mais tarde, depois que ela o cobrou. No parecer, ele recomenda o arquivamento da notícia-crime, dizendo que ordenou a abertura de uma “averiguação preliminar” e que isso já é o bastante.

Na minha opinião, há uma penca de coisas com cara de crime na live de Bolsonaro sobre as eleições. Não faltam motivos para a instauração de um inquérito. Mas Aras poderia também ter alinhavado argumentos para rejeitar essa tese. Não fez nem uma coisa nem outra. Decidiu cozinhar o assunto, ordenando a instauração da tal averiguação, um procedimento que tende a caminhar com tanta presteza quanto a que ele teve para responder a Cármen Lúcia. A boa notícia é que a ministra neste caso não depende do PGR, pode mandar instaurar o inquérito de ofício. Esperemos que o faça.

O quietismo de Augusto Aras, é claro, se mostrou com força máxima no auge da pandemia, quando ele resistiu a tomar qualquer medida para investigar Bolsonaro e a cúpula do governo pelas ações e omissões desastrosas no combate à doença. Diante das cobranças, soltou uma nota com outra versão da história de que não cabe à PGR aumentar a polarização. Segundo ele, caberia ao Congresso responsabilizar criminalmente o presidente, se achasse necessário.

É possível pegar muito mais pesado com Aras, dizendo que em algumas ocasiões ele agiu para blindar o presidente e para atingir seus adversários. Pode-se dizer que os milhões de reais que ele diz que o MP recuperou vieram, na maior parte, de ações iniciadas pelas forças tarefa da Lava Jato, que ele encerrou, substituindo-as por um modelo de investigação contra corruptos mais centralizado e mais sujeito ao controle da PGR. Mas quero me concentrar na teoria das cordas esticadas.

Se Aras quer mesmo agir segundo a Constituição, ele precisa agir com firmeza diante de indícios firmes de que autoridades federais, o presidente em particular, cometeram crimes comuns. Ele não pode empurrar toda a responsabilidade de confrontar Bolsonaro para o Congresso, como fez durante a pandemia, porque o Congresso só pode avaliar crimes de responsabilidade. Crimes comuns são da alçada do PGR, e seu papel é agir,, quando houver indício de que eles ocorreram. Duela a quien duela, como dizia aquele outro presidente.

Afrouxar cordas, evitar fazer marola, pôr água na fervura – seja qual for a expressão, esse não é o papel de Augusto Aras. Quando deixa o presidente barbarizar à vontade ele não está agindo segundo a Constituição, nem de maneira técnica. Está agindo politicamente, como Arthur Lira, sentado sobre aquela pilha de pedidos de impeachment bem fundamentados que ele se nega a analisar.

Rodrigo Janot foi o exemplo do PGR justiceiro, que parecia ter por missão purgar a política, bem, de todos os políticos. “Enquanto houver bambu eu mando flecha”, dizia ele. Augusto Aras quer ser o inverso de Janot. Mas nenhuma das duas atitudes é boa. Nunca foi mais verdadeira aquela ideia de que a virtude se encontra em algum lugar na metade do caminho.